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Unsatisfashion 4

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BELEZAbeleza_poderinuenciadorasbeleza_italianafotograa_vaidadenúmero quatro.schiaparellisubculturasN.4MAR/JUN 2021

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3editorialUNSATISFASHION BELEZAUm assunto que parecia fácil e corriqueiro, revelou-se difícil e intenso no momento de denir a abordagem nesta quarta edição da Unsatisfashion. Falar de beleza e moda, apresentar uma reexão crítica, diferentes pontos de vista e, por que não, abraçar a causa do glamour e da “beleza pela beleza”, foi um desao que, desde abril, eu, Bruna e a jovem e talentosa Ana Beatriz enfrentamos. Finalmente, colocamos nas suas mãos o resultado de um trabalho que, todas nós esperamos, seja muito inspirador para você.Tentei de diversas maneiras articular e apresentar cada um dos textos que aqui trazemos criando um uxo contínuo entre eles. Foi impossível, não porque não haja sentido, mas sim porque cada um, à sua maneira, mostra a tirania da beleza, mas também os seus encantos. Prero então, falar do que aprendi com as pesquisas, as entrevistas e os textos generosamente cedidos por nossas autoras convidadas Dilys Blum, Julia Vidal, Isabela Discacciati e Salete Santos que compartilharam conosco seus pensamentos sobre a moda e a beleza.Ao entrevistar prossionais e estudiosas dos cinco continentes, entendi que vivemos um momento único quando falamos de moda e beleza: nalmente a moda é vista como um direito, um recurso imprescindível e que deve ser acessível a todas nós, pois ela é fundamental para a construção de nossa identidade e de nossa imagem pública. Por acessível não falo sobre o preço, mas sim dos produtos. Não importa nosso corpo, nossa idade, nossa religião, nossa etnia ou nossa cultura, a moda deve nos contemplar e nos ver como consumidoras em nossa diversidade. Mas, apesar desse discurso e luta, o espaço ocupado pela imposição de padrões e pelos estereótipos é enorme e muito convincente, pois está mais consolidado e articulado. Por isso vivemos um momento tão especial. Nós, consumidoras, ao dominar e nos fazer presentes no sistema produção e divulgação de imagens que constroem belezas a partir da moda, podemos sim virar o jogo.A conclusão à qual cheguei, então, é aquela que dá título à primeira matéria - beleza é poder! – e por isso a moda é um recurso de empoderamento. Na medida em que reconhecemos somente a algumas belezas por meio da perpetuação da padronização, deixamos de fora tanta gente que poderia viver sua imagem e identidade de forma plena, feliz e muito mais criativa. Boa leitura e nos vemos em breve.Luz Neira García

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4versão 1 de 05/08/20215 hoje_moda BELEZA É PODER6 fashion_capitalA FLUIDEZ DABELEZA  NA  MODA8inspiracãoELSA  SCHIAPARELLI18 African Fashion FoundationNOVOS  TALENTOS23 cultura_de_moda BELEZA  NEGRA26 cultura_de_modaALT  IS  THE  NEW  BLACK31fashion_business AS INFLUENCIADORAS35 hoje_moda A FOTOGRAFIAE A VAIDADE39 futuro_moda OS PONTOS DE VISTA DA BELEZAsumárioexpedienteN.4 MAR/JUN2021Edição e organização:Fashion For FutureAna Beatriz HoertBruna RigatoLuz Neira GarcíaAgradecimentos:Dilys Blum e National GalleryVictoria, Isabela Discacciati,Julia Vidal, Salete SantosProjeto Gráco: Bruna RigatoColaboração traduções e revisão:Vitoria Laudisio NeiraCapa: Vivienne Westwood em seu desle emParisOutono/Inverno 2017Créditos: Imaginechina (Alamy.com)Editorial: Fontana di Trevi, RomaCréditos: V_E (Shutterstock)









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Ainda que a beleza seja assunto debatido desde a Antiguidade, a beleza como “estilo de vida” se consolidou em meados do século 19, na Inglaterra, a partir do Esteticismo. Os líderes desse movimento presentearam o mundo com um legado interessante: a arte não precisava ter um papel social e deveria buscar apenas a beleza. Desde então, no mundo ocidental, a beleza saiu para sempre do interior para o exterior, deixou de ser considerada fútil, foi capitalizada e tornou-se uma forma de poder.Mrs Luke Ionides, William Blake Richmond, óleo sobre tela, Inglaterra, 1882. terra, 1882. Foto: Acervo V&A Museum, Londres (Image ID 2006AM3755, E.1062-2003) 5“Arrumar-se” é uma expressão corriqueira em nosso dia a dia, um hábito associado ao bom gosto e a privilégios sociais. O resultado alcançado pode inclusive ser visto como prova de sucesso pois, mesmo que “muitas vezes queiramos acreditar o contrário”, nos conta Sarah Bonell, existem inúmeras provas que pessoas bonitas “são consideradas mais amáveis, sociáveis, competentes e até mesmo mais humanas”. Por isso, para Sarah, que é doutoranda em psicologia na Universidade de Melbourne (Austrália) e trabalha em uma pesquisa sobre a moralização da aparência, é “perfeitamente entendível que para algumas pessoas a beleza possa ser uma prioridade”.É a tal da prioridade da beleza na nossa cultura que faz a indústria da moda lucrar muito propagando determinados padrões, anal, ao mesmo tempo em que os difunde e os fortalece, também vende os produtos certos que “te arrumam.” Cosméticos, roupas, acessórios, tratamentos estéticos, médicos (dermatologia, nutrição, exercícios etc.) e até mesmo cirurgias, são nossos aliados na conquista de padrões de beleza que mudam conforme a moda, mas, sempre, são cada vez mais altos, difíceis e onerosos – provavelmente inalcançáveis –, como a magreza curvilínea ou a eterna juventude. Em alguns casos, as mudanças pretendidas e o conceito de “melhorias” podem ser ainda mais drásticas como as mencionadas pela professora da Universidade de Delaware (EUA), Dra. Jung Jaehee, ao contar hoje_modaBELEZA É PODERCONTINUA NA PÁGINA 39que uma das mais comuns cirurgias plásticas na Coréia é a “double eyelid”, que tem o objetivo de deixar o olho maior, ou seja, ocidentalizado. Assim, não interessa de qual lugar do globo estamos falando, todos os dias a indústria da moda coloca esses padrões em nosso feed e nos convence de que a beleza tem características especícas e que também nós podemos ser belas. As vantagens de aderir a esse apelo? Conança e autoridade para enfrentar o espelho e as redes sociais, nas quais exibimos nossas conquistas pessoais pois, lembrando, beleza é poder. Assim, depois de ver tantos e tantos before & after de todos os tipos – das dicas de estilo às harmonizações faciais –, entendemos que o problema não reside no padrão de beleza, mas sim em haver um único padrão, que é difundido principalmente pela indústria da moda como um caminho para o sucesso e para a satisfação pessoal.Deixando de lado qualquer análise de cunho mais social e pensando apenas em nós e em nossas roupas, a realidade é que pessoas com corpos diferentes dos “legalizados”, se reconhecem estereotipadas dentro do discurso da representatividade e da diversidade. Tamanhos, estilos, modelagens e até mesmo tendências partem de corpos que atendem aos requisitos de beleza que são difundidos como um modelo a ser seguido e o que se espera, é que a moda seja uma experiência possível e modo de expressão para um maior número de pessoas.

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6A FLUIDEZ DA BELEZA NA MODAPor: Isabela Discacciatifashion_capitalDentre todas as camadas do mo-vimento sinuoso da beleza, a subje-tividade é a que mais colabora com a criatividade na moda. Os estilistas ita-lianos, da Sicília profunda ao norte in-dustrial, região que inclui Milão, con-viveram desde sempre com exemplos de desconstrução de padrões. Templos gregos, mosaicos bizantinos, vitrais góticos, linhas renascentistas, o triun-fo barroco, as formas e cores liberty marcaram momentos históricos e de-saaram a padronagem.Este mosaico que acompanha rup-turas e novas concepções tem muito a dizer sobre a beleza italiana na moda. Um universo tão variado só podia dar aos homens e mulheres desta terra um conceito estético de irregularida-de. Basta pensar nas musas exaltadas desde sempre por Dolce e Gabbana, de Monica Bellucci, que carrega o es-tereótipo da sensualidade e força da mulher do sul, a Bianca Balti, com seus traços delicados e sosticação.A desconstrução dos padrões de beleza, que ganhou espaço nas discussões atuais, se reete na moda como o desejo de vestir todos, transpondo fronteiras de gênero, proveniência, idade, forma física e desaando o conceito tradicional de beleza, que ganha uidez. Em 2018, a dupla de estilistas, que já em sua origem incorpora universos tão opostos (norte e sul), realizou um histórico desle protagonizado não só por top models e inuencers. Na passarela deslaram anônimos selecionados pelas ruas de Milão, casais gays, negros, orientais e pessoas acima dos 60 anos. Na ocasião, em entrevista à revista D, encarte de moda do jornal La Repubblica, Stefano Gabbana explicou a escolha: “O nosso dever é falar com todos porque a moda hoje fala com todos, a moda é de todos, mesmo se você não a compra. Ela tornou-se um instrumento de beleza e de inclusão”.Outro exemplo é a campanha que a marca fez para as mídias sociais inspirada nas obras do pintor Rubens. Vanessa Incontrada, atriz e apresentadora de formas curvy, protagoni-za cenas barrocas vestindo peças de uma co-leção que contempla uma numeração que vai até ao 54.6Monica Bellucci. www.abotepronto.net/

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Isabela Discacciati é jornalista e vive em Treviso, norte da Itália. Realizou um percurso formativo na Polimoda de Florença e trabalhou na área retail das marcas Gucci e Dolce e Gabbana. Especializada em cultura e patrimônio gastronômico pela Universidade Ca Foscari (Veneza) é autora do guia Passeios em Veneza.Modelo no backtsage do desfile da designer Stella JeanFoto: Tinxi (Shutterstock)BELEZA E MULTICULTURALISMOO multiculturalismo é de grande ajuda no entendimento da subjetividade intrínseca ao conceito de beleza. E uma das vozes mais atu-antes hoje no cenário italiano é a estilista Stella Jean. Filha de pai italiano e mãe haitiana, ela cresceu em Roma vivenciando as diferenças culturais e estéticas dos dois países. Foi procu-rando um equilíbrio entre os dois lados que ela chegou a um ponto de encontro, manifestando na moda a riqueza de pertencer a duas culturas tão diferentes.Para além do discurso estético, que por si já é tão importante, Stella promove de forma efeti-va a integração destes dois mundos. Sua marca é fundada sob princípios de sustentabilidade e equidade, colaborando com artesãos de países como Peru, Haiti, Burkina Faso, Mali e outros, na América do Sul, África e Ásia. A beleza de suas peças é traduzida nas cores, padronagens, mas também na valorização e manutenção de técnicas e saberes antigos, in-corporando-os à cadeia fashion. Stella se de-ne uma construtora de pontes. “A moda é um poderoso megafone internacional que permite que a beleza abra um caminho para o especta-dor, um caminho que, para mim, se transforma em um canal de integração ”. A beleza que dene a Itália segue assim, desde o início, como uma colcha de retalhos. Os diver-sos povos que aqui estiveram: gregos, norman-dos, turcos, persas, espanhóis, austríacos, entre tantos outros, deixaram sua contribuição para a construção desta identidade. Uma marca que segue transmutando hoje com a complexidade e riqueza que trazem os lhos dos imigrantes, que aqui nasceram dividindo-se entre dois mundos. Milão, como capital da moda, abarca esta mis-tura cosmopolita histórica, com uma forte base que a sustenta. Mas, sabiamente, se deixa conta-minar por inspirações que se revelam a chave do que o mercado almeja: versatilidade e inclusão. QUANDO A BELEZA É SUBVERTIDANa contramão do conceito de beleza e do lado oposto do estilo festivo e extravagante de Dolce e Gabbana, Miuccia Prada tem a falar muito mais sobre a feiúra. Foi ela a primeira estilista a questionar o belo como único caminho na moda. “Se eu z alguma coisa, foi tornar o feio atraente”, declarou à jornalista Suzy Menkes em uma entrevista ao New York Times. Temos de considerar a feiúra aqui como o irregular, o aparentemente desarmônico que vai contra aos cânones ditados pela sociedade. Neste aspecto, Miuccia Prada foi revolucio-nária ao incorporar a estética do feio, ou ugly chic ao DNA da sua marca. O estilo da própria Miuccia é uma herança de suas origens milane-sas, onde dão o tom a sobriedade, as cores escu-ras, o conforto e a praticidade. A moda da Prada é feminina e feminista, pois ela nasce do ques-tionamento dos padrões estéticos e combate a posição servil em que a sociedade patriarcal colocou a mulher, onde beleza é sinônimo de sensualidade, sem chance de escolha.7

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inspiração

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ELSA SCHIAPARELLI E A ARTE DA ILUSÃOArtigo publicado pelo Art Journal of the National Gallery of Victoria, Melbourne, Australia, 2020.Tradução: Fashion for FutureEm sua autobiografia de 1956, Christian Dior refletiu sobre o “milagre da moda”, dizendo que “hoje em dia a alta costura é um dos últimos resquícios das maravilhas e os costureiros eram os últimos a possuir a varinha de fada madrinha da Cinderella.”(1) A referência de Dior ao the marvelous, um dos conceitos centrais do surrealismo, contextualiza as palavras de André Breton, que no Primeiro Manifesto Surrealista (1924), afirmou: “O marvelous é sempre belo, tudo que é maravilha é belo, na verdade, apenas a maravilha é bela.” Dior reconheceu que a alta costura oferece oportunidades de extrapolar os limites do design. Invocando as palavras de Louis Aragon que viu no the marvelous a “erupção da contradição com o real” (2), Dior observou que “há espaço para a audácia na tradição da alta costura.”(3)9Foto ao lado, detalhe da jaqueta e vestido Hall of Mirrors de Elsa Schiaparelli, 1938. National Gallery of Victoria, Melbourne.Elsa Schiaparelli nos anos 1930. Kristine (Flickr)

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10A familiaridade de Dior com o the marvelous tem origem no início de sua carreira como pro-prietário de uma galeria de arte em Paris antes que entrasse no mundo da moda. Aos 23 anos, ele se juntou aos galeristas Jacques Bonjean e Pierre Colle para vender e exibir muitos artistas líde-res do movimento vanguardista, como Christian Berard, Salvador Dalí, Alberto Giacometti, Pavel Tchelichew, Man Ray e outros. Com certeza o jovem galerista conhecia a mais nova estrela da moda, a italiana costureira Elsa Schiaparelli, cuja meteórica ascensão foi assun-to em Paris durante o nal dos anos 1920. Ape-sar de 15 anos de diferença de idade, os mundos sociais de Dior e Schiarapelli se sobrepunham e eles tinham muitos amigos próximos em co-mum. Em 1927 Schiaparelli lançou sua carreira quando começou a vender suéteres modernis-tas tricotados à mão por imigrantes armênios em seu apartamento na rue de l’Université 20. Eles zeram tanto sucesso que no nal do ano ela se mudou para o outro lado do Rio Sena para áticos maiores na rue de la Paix 4. Em 1932 ela expandiu seu salão em dois andares adicionais e produzia de sete a oito mil peças em oito di-ferentes ateliês. O vanguardista designer de in-teriores Jean-Michel Frank, um amigo próximo e frequentador da galeria de arte de Dior, foi chamado para reformar o apartamento e o salão de Schiarapelli e, novamente em 1935, quando se mudou para a Place Vendôme 21. A primeira coleção apresentada em 1935 no novo espaço foi nomeada Pare, olhe e ouça e não deixou dúvidas de que Schiarapelli estava a caminho de rivalizar com Chanel como costureira de maior sucesso em Paris. A jornalista de moda britânica Alison Settle observou em 1937 que “suas roupas eram universalmente procuradas como a expressão perfeita das ideias de sua época… ela tem sido mais rápida em ver o futuro do que qualquer outro designer”(4). Enquanto Chanel diminui-ria Schiaparelli como “a artista italiana que faz roupas”, outros reconheceram sua importância além da moda. Em A vida secreta de Salvador Dalí (1942), Dalí descreveu Paris na segunda metade da década de 1930 como representada “não apenas pela polêmica surrealista no café da Place Blanche, ou pelo suicídio do meu grande amigo René Crevel, mas pelo ateliê de costura que Elsa Schiaparelli estava prestes a abrir na place Vendôme”(5). Em uma entrevista em 1936 à Harper ‘s Bazaar sobre duas exposições surre-alistas em Nova Iorque, o galerista Julien Levy descreveu Schiaparelli como “a única designer que entende o surrealismo.”(6)Ao longo de sua biograa Shocking Life (1954) Schiaparelli refere-se a si mesma como uma mística, vendo que “sua vida tem signi-cado outra coisa - um ponto de interrogação eterno”.(7) Suas crenças inuenciaram muito sua visão da moda como um processo de trans-Foto acima: casaco criado por Schiaparelli em colaboração com o artista surrealista Jean Cocteau, 1937. Acervo V&A Museum, Londres (T.59-2005)

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11formação que unia o eu interior e o eu exterior. Ela se baseou nas tradições folclóricas italianas de sua infância, nos interesses acadêmicos de sua extensa família, nas losoas orientais, em religiões que “se conectam diretamente com a fonte da harmonia da criação”(8), teosoa, ocul-tismo e parapsicologia. Nascido em uma famí-lia de intelectuais romanos, o pai de Schiapa-relli, Celestino, era um estudioso das línguas e da literatura árabe islâmica, e era chefe da Bi-blioteca Lincei de Roma; seu primo Ernesto era um famoso egiptólogo; e seu tio Giovanni, era um astrônomo mundialmente famoso e diretor do Observatório Brera em Milão, e cujos outros interesses em fenômenos psíquicos e espiritua-lismo inuenciaram muito sua sobrinha. Em 1913, aos 23 anos, Elsa Schiaparelli deixou Roma e foi para a Inglaterra para ajudar a cuidar dos lhos de uma amiga de sua irmã. No ano se-guinte, em uma viagem de um dia para Londres, ela assistiu a uma palestra no Occult Club na pla-ce Piccadilly. O clube ofereceu uma série de pales-tras cobrindo teosoa, adivinhação, quiromancia e tópicos semelhantes, e à época, ela tinha em sua biblioteca uma “exibição de cartazes e avisos refe-rentes ao lado psíquico da atual grande crise nos negócios mundiais”. (9) Naquela tarde, o orador foi William Wendt de Kerlor, presidente do clu-be, que “falou dos poderes da alma sobre o cor-po, da magia e da juventude eterna.”(10) De Kerlor foi imediatamente atraído por Schiaparelli que o estava ouvindo atentamente, e o dois passaram horas conversando após sua apresentação. Pela manhã, eles estavam noivos e se casaram logo depois.(11) Um ano depois,(12) de Kerlor foi depor-tado da Inglaterra por fazer previsões sobre o futuro. O casal se mudou para o sul da França e em 1916 emigrou para os Estados Unidos. A biograa de Meryle Secrest(13) sobre Schiaparelli traça sua “sorte” ao longo dos anos seguintes, enquanto eles se engajavam em demonstrações públicas de hipnotismo, leitura da sorte e ou-tros truques de prestidigitação de Nova York a Boston. Durante esse período, de Kerlor estava absorvido em traduzir do francês para o inglês Nossas forças ocultas: um estudo experimental das ciências psíquicas (1917) de Emile Boirac e A psicologia do futuro (1918). Schiaparelli é vis-ta em várias das fotograas que acompanham a edição de 1918, incluindo uma em que ela olha para uma bola de cristal japonesa com a legen-da: Olhar cristalino. O sujeito, colocando-se em um estado de clarividência ao olhar xamente para um globo de cristal, põe em jogo notáveis poderes de segunda visão, profecia etc., que nor-malmente estão latentes.(14) Em 1919, o casal es-tava separado e Schiaparelli se tornava uma mãe sólo com uma lha para sustentar e, em 1922, Schiaparelli mudou-se para Paris, uma cidade que ela havia visitado apenas uma vez em seu caminho para a Inglaterra.Desde cedo Schiaparelli compreendeu o po-der da moda. Levando a sério sua mãe, que dizia ela era muito feia enquanto sua irmã era bonita, Schiaparelli sonhava com maneiras de transfor-mar sua aparência. Ela passava horas brincan-do de se fantasiar no sótão do apartamento da família no Palazzo Corsini, experimentando os lindos vestidos e roupas íntimas que sua mãe usava quando jovem. Ela recorreu a medidas cada vez mais drásticas e plantou sementes de ores em sua garganta, orelhas, nariz e olhos na esperança de se tornar um lindo jardim. Schiaparelli provavelmente contou essa história para seu amigo pró- ximo Salva-dor Dalí, que mais tar- de rein-terpretaria o re- lato com mulheres com cabeça de or em três pintu- ras de 1936, duas das quais Schia- parelli possuía(15) e uma terceira, Três jovens mu-lheres surrealistas segurando em seus braços as peles de uma orquestra que serviu de inspiração para sua colabo-ração no Vestido de lágrimas (1938), exibido como parte Foto ao lado: Foto de divulgação de Schiaparelli,Outono/Inverno 2021/22Cortesia de House of Schiaparelli

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12de sua coleção Circo do verão de 1938, que foi apresenta-da algumas semanas após a Exposição Internacional do Surrealismo ter sido inaugurada em Paris. Como os surrealistas, Schiaparelli foi inspirada por mitos e alegorias e especialmente atraída por contos de transformação que “deram às suas deusas, mesmo quando denitivamente gordas, a serenidade da perfeição e a fabulosa aparência de liberdade.”(16) Por exemplo, a co-leção verão 1937 reimaginou as Metamorfoses de Ovídio e a Parábola do sonho de borboleta taoista atribuída ao lósofo chinês Chuang Tzu, seguidor do místico Lao Tzu.(17) Wallis Simp-son, a mulher mais falada da época e um ícone do estilo, selecionou apropriadamente dezoito modelos do verão de 1937 coleção para marcar sua transição de socialite americana duas ve-zes divorciada para Duquesa de Windsor. Com uma piscadela maliciosa para seus críticos, “a noiva do ano” escolheu ser fotografada por Cecil Beaton antes de seu casamento Castelo de Candé(18) usando o vestido estampado de lagos-ta de Schiaparelli (1937), elaborado em colabo-ração com Salvador Dalí. Para muitas jovens, a Sra. Simpson era o epítome da elegância e elas acompanhavam avidamente as últimas notícias sobre os preparativos do casamento, incluindo detalhes de seu enxoval de sessenta e seis peças.A coleção Metamorfose foi a perfeita metáfo-ra para a futura Duquesa cujo novo guarda-rou-pa foi cuidadosamente planejado para suavizar sua imagem pública. O vestido com estampa de borboleta do verão de 1937 dominou as suas es-colhas, o que incluiu um casaco preso ao pescoço sobre o vestido de borboletas e uma jaqueta de lã com grandes botões em forma de borboleta. Con-siderada uma das mulheres mais belas daquele período,(19) essas roupas subvertiam os ideais tradicionais de beleza feminina, e Simpson, as-sim como Marie Laure de Noailles, Daisy Fellowes and Marie Curie eram a en-carnação do the marvelous. Com cabelos negros e traços fortes, elas eram conhecidas como as mais bem vestidas mulhe-res de Paris e usavam a moda para transformar suas imperfeições em algo chic. Como comentou a ex-e-ditora da Vogue Bettina Ballard: A cliente de Schiaparelli não precisa-va se preocupar se era bela ou não - ela era um tipo. Ela seria notícia por onde passasse, seria protegida por uma armadura de inteligência divertida con-vertida em elegância. Suas roupas pertenciam a Schiaparelli mais que a elas mesmas - era como pegar emprestada a elegância de outra pessoa e, junto com ela, a conança.(20)De acordo com a jornalista britânica Alison Settle, a beleza de “nascimento” se satisfaz com a sua aparência e teme a mudança, en-quanto a beleza “construída” se move com o tempo e olha para o futuro.(21)A metamorfose da Sra. Simpson não de-saparecia em suas admiradoras, como Vera Bowler Worth de Bristol, que penteava seu ca-belo de um jeito parecido. Antes de casar-se em 1935 com John Wesley Worth, diretor re-gional de Carreras Ltd. que era o maior fabri-cante britânico de cigarros, Vera tinha traba-lhando no departamento feminino de Jones & Co. em Bristol e era muito conhecida por seu senso de moda. Talvez tenham sido as peças de Schiaparelli que Simpson comprou para seu guarda-roupa, que estimulou Vera a conhe-cer seu ateliê em Upper Grosvenor Street 6 em Mayfair para selecionar um conjunto impactante.(22) Sala de espelhos, jaqueta e vestido, da coleção Cósmica, inverno 1938-1939,(23) para vestir no jantar dançante anual da companhia. Esse con-junto, hoje na coleção da National Gallery of Victoria, em Melbourne, compreende uma ja-queta elegante de veludo preto com manga-pre-sunto e um vestido longo justo aberto no pes-coço. A jaqueta, luxuosamente decorada com Foto acima: Telefone-Lagosta de Salvador Dalì, 1936.Nasch92 (Wikimedia Commons)

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13bordados dourados e pequenos espelhos apli-cados, foi fotografada por Horst para o número de 15 da edição de setembro de 1938 da Vogue América, onde ele aparece combinado com um pequeno chapéu inclinado para a frente com pe-nas de avestruz inclinado e luvas. Provavelmente as luvas fossem douradas como aquelas vestidas pela socialite Lady Pamela Berry em novembro de 1938, quando foi fotografada com este con-junto no luxuoso cinema Curzon em Mayfair para o The Bystander. Este look comportado foi dramaticamente transformado quando ela tirou a jaqueta para jantar e dançar, revelando as cos-tas abertas do vestido. O conjunto de Vera pode ter sido um dos mais caros vendidos por Schiaparelli naquela estação. Marlene Dietrich comprou um parecido da mes-ma coleção e o recibo ainda existe. (24) Ela sele-cionou um conjunto de veludo azul, com jaqueta bordada com os signos do zodíaco para vestir no navio SS Normandie em novembro de 1938 quando viajava para Nova Iorque. A atriz gastou um total de 33.455 francos na coleção de inverno 1938-39 de Schiaparelli, incluindo esse conjunto pelo qual pagou 4 mil francos. Entre outras com-pras, havia um vestido de noite por 3 mil francos e suéteres por 425 francos cada. Schiaparelli sa-bia que a alta costura não era acessível à maio-ria das mulheres. Em uma entrevista em 1937, ela falou que era possível para uma mulher estar bem-vestida gastando 6 mil francos ao ano se ela zesse seus próprios vestidos ou se fosse auxilia-da por sua família. Ela cobrava por um simples vestido 400 francos e, em 1937, 6 mil francos equivaliam a 111 libras ou 500 dólares.(25)Schiaparelli dedicou a coleção Cósmica, 1938-1939, à mulher comum. De acordo com o enérgico press-release escrito pela diretora de publicidade da Maison, Hortense MacDonald, aquelas linhas tinham sido estritamente mode-ladas para vestir o corpo seguindo os princípios da geometria Euclidiana em materiais como moirès, veludos e bordados dourados que muda-vam conforme a luz e forte contraste cromático “que giravam em volta do sol”, como o amarelo canário “Urano” e o “aeroestatico” berinjela pur-pura escuro. Como todas as coleções de Schia-parelli, o tema era uma mistura de referências históricas e eventos e ideias contemporâneas. A coleção falava de astrologia, planetas, constela-ções, o sol, o Rei Luis XIV, seu sucessor Luis XV, assim como o Gay Nineties e as últimas inova-ções técnicas, como os zíperes plásticos multi-coloridos com blocos de cores diferentes nos dentes. As memórias da infância de Schiaparelli eram também recursos de inspiração. Ela revisi-tava o passado afetuosamente nas muitas horas que passava com seu amado tio, o astrônomo Giovanni Schiaparelli, olhando os planetas e as estrelas. Ele dizia que as pintas em sua boche-cha tinham a forma da constelação Ursa Maior, o que inspirou Schiaparelli a adotá-la como seu talismã. A constelação estava bordada no con-junto que Dietrich comprou e Schiaparelli e ela Foto ao lado: Vestido Lagosta de Elsa Schiaparelli, 1937Georgebre (Wikimedia Commons)

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14também a aplicou em seu broche e a estampou nos tecidos do salão de seu ateliê.A coleção Cósmica foi a mais luxuosa até aquela data, com veludos e lãs brilhantes e co-loridas adornadas com bordados dourados ex-traordinários. Febo Apolo, o deus do sol que controlava o cosmos, estava bordado nas costas de uma capa de lã rosa-camafeu adquirida por Daisy Fellowes; a frente de uma capa de veludo preta, feita para a legendária decoradora e an-triã Elsie de Wolfe (Lady Mendel), apresen-tava a famosa fonte de Netuno no Palácio de Versailles, próxima à sua casa na Vila Trianon; e as costas do casaco de lã que celebrava o pa-tronato de Luis XV na Fábrica de Porcelanas Sèvres, apresentava seis vasos rococó, forman-do bolsos adornados nas bordas com ores de porcelana em rosa e branco. A jaqueta de velu-do preta de Vera era igualmente impressionan-te e adornada com um par de espelhos de mão grandes com moldura dourada com o cabo ao redor do pescoço. De estilo barroco, cada espe-lho tinha 25 pequenos espelhos retangulares, relembrando o salão de Espelhos do Palácio de Versailles, onde 357 espelhos estão na frente de uma parede de janelas. Para clientes mais con-servadoras, Schiaparelli oferecia um conjunto de lã com botões grandes de plástico na forma de espelhos de mão.Os bordados de Schiaparelli eram produzidos por Albert Lesage et Cie, que tinha sido respon-sável pela corte e pela ocina de bordados tea-trais de Michonet em 1924. Ao mudar-se para a place Vendome 21, ajudou a reviver o ateliê Lesa-ge após a quebra da bolsa de 1929, quando o es-tilo priorizava as silhuetas sem ornamentação. A parceria de Schiaparelli com Albert depois 1935, salvou seu negócio e ela lhe dava ideias de te-mas para cada estação. Diferentemente de seus contemporâneos que usavam os bordados Lesa-ge como elemento decorativo, os exemplos que Albert criava para Schiaparelli frequentemente inspiravam suas silhuetas e ela era cuidadosa em apresentar seu trabalho da melhor maneira.Schiaparelli foi corajosa em sua escolha de bo-tões e trabalhava com os melhores artistas e arte-sãos, como Alberto Giacometti, para ter certeza de que teria fechos únicos, um selo distintivo de suas criações, o que adicionou outra camada à his-tória. Os cinco botões pretos da jaqueta de Vera foram moldados a partir de um modelo em forma de uma cabeça de mulher greco-romana, ecoando referências clássicas na estação. Botões idênticos foram também usados em uma jaqueta preta de veludo bordada, com uma chuva de dourados e brilhantes. É provável que esses botões tenham sido inspirados na imagem da deusa Aretusa que Vestido de lágrimas de Schiaparelli, 1938.Acervo V&A Museum, Londres (T.393&A,D to F-1974)

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15aparece em uma moeda grega antiga cunhada em Siracusa, uma ilha da Sicília, por volta de 410-400 a.C. Aretusa e sua conexão com Siracusa tinha um signicado pessoal para Schiaparelli. Seu pai Ce-lestino foi o principal colecionador de moedas e especialista na Sicília muçulmana, enquanto seu tio Giovanni, o astrônomo, descobriu a aparência dupla de Aretusa Lacus em Marte em 1888. Are-tusa também é o título de um livro de poemas de amor que ela escreveu aos 21 anos e que, para a grande consternação de sua família, não foi ape-nas publicado mas também revisado. Podemos facilmente imaginar Schiaparelli encontrando inspiração para sua própria poesia no trabalho do poeta inglês romântico Percy Bysshe Shelley, que morreu em Roma em 1820 e dedicou um poema ao mito de Aretusa e Alfeu.O salão de Schiaparelli em Londres na Upper Grosvenor Street 6, promissora área de Mayfair, era um ambiente muito mais conservador para apresentar a coleção de alta costura do que a de Place Vendôme, onde vitrines surrais eram su-pervisionadas por Bettina Bergery, quem Salva-dor Dali uma vez descreveu como “uma das mu-lheres de Paris mais envolvida com fantasia.”(26) Em Mayfair os clientes encontravam as mesmas criações da loja de Paris, mas era mais focada nos itens mais conservadores e adequados ao gosto britânico. O conjunto de Vera e as três ja-quetas da Coleção Cósmica são conhecidas por terem sobrevivido. O conjunto e uma das jaque-tas, foram vendidos na loja de Londres(27) em-bora não estejam entre os cinco designs regis-trados pelo copyright britânico naquela estação.Surpreendentemente as outras duas jaquetas com etiqueta Schiaparelli 21 Place Vendôme, são marcadas Printemps 1939, embora o número dos modelos seja aquele designado para a coleção in-verno 1938-39. Ao nal de cada coleção as ma-nequins Schiaparelli ou vendeuses e clientes favoritas, tinham a oportunidade de adqui-rir os modelos da loja com descontos sig-nicativos, o que provavelmente explica a discrepância nas etiquetas. Muitos dos modelos estavam bem gastos no m da estação, pois Schiaparelli os emprestava para suas manequins e amigas especiais como Daisy Fellowes, para que sua coleção fosse vista em público e comentada pela impren-sa. Nem sempre a opinião publica foi uma van-tagem. No início de 1937, Marlene Dietrich devolveu um vestido e uma capa que ela nem tinha usada depois de vê-los no tea-tro Shattesbury sendo vestida por “uma atriz que tinha somente uma pequena parte na peça.”(28)Uma das jaquetas de Paris com a etique-ta Printemps 1939 que agora está no Costu-me Institute do Metropolitan Museum of Art, orginalmente pertenceu a Pauline Potter que em 1954 casou-se com Baron Philippe de Rotschild. Potter trabalhou para Schiaparelli como manequim (vendedora) em Londres e em Paris entre 1936 e 1940 e poderia ter com-prado a jaqueta quando ela foi à venda no -nal da estação. Uma terceira jaqueta,(29) agora numa coleção privada, é etiquetada Modelo 65887 e inclui o nome da cliente, Sra. Ward. Foi dito que pertenceu à segunda Sra. Herbert Gurschner, que mais tarde vestiu a jaqueta na noite de abertura da adaptação de Medeia, de Robinson Jeers, no Globe Theatre em Londres em setembro de 1948. Seu marido, um conhe-cido pintor de Tirol, foi cenógrafo dos teatros Globe e Apollo durante os anos 1940 e 1950.Em janeiro de 1939 Schiaparelli anunciou que seu salão de Londres fecharia no m de julho. A última coleção que ela vendeu lá foi a coleção Música, inverno 1939, que tinha sido apresentada em Paris em 28 de abril. Alguns meses mais tarde, em julho, as modelos tiveram a oportunidade Foto: Chapéu-sapato de Schiaparelli, 1937-1938.Acervo V&A Museum, Londres (T.2-2009)

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16de comprar roupas com preços descontados; por exemplo, vestidos que normalmente custavam 40 ou 50 guinéus, eram agora reduzidos a 15.As características definidoras do conjunto Vera, seus espelhos, nos leva ao the marvelous e à magia da alta costura onde tudo é possível. O surrealista Pierre Mabinlle descreveu o es-pelho como “o mais banal e mais extraordiná-rio instrumento mágico de todos”,(30) que evoca problemas fundamentais para identificar o eu, os traços da realidade. O agora icônico retrato de Horst de Schiaparelli para a Vogue America 1936 captura essa incerteza. Vestida na moda em um conjunto para o inverno 1937-1938, ela se inclina para fora de um ‘espelho’ estilizado, ocupando um espaço que flutua entre o real e o imaginário. Como Alice, Schiaparelli atraves-sou o espelho e entrou no mundo paralelo da place Vendôme, que era, nas palavras de Jean Cocteau, ‘um laboratório do diabo. As mulheres que vão lá caem em uma trapaça e saem masca-radas, disfarçadas, deformadas ou reformadas, de acordo com os caprichos de Schiaparelli. (31)O primeiro dos 12 Mandamentos para a Mulher que fecha a autobiografia de Schiaparelli, exorta as mulheres a conhecerem a si mesmas. Entretanto, Schiaparelli só se co-nhece “de ouvir falar. Eu somente a vi no es-pelho. Ela é, para mim, algum tipo de quinta dimensão.” (32) Ela lembrava uma visita a um fa-moso restaurante em Berlim onde se viu refle-tida nos espelhos que cobriam a imponente es-cada, como a imagem de uma mulher elegante entre uma multidão de pessoas em mau estado. A mulher lhe lembrou Paris. “Céus”, exclamou sua amiga, “mas você não se reconhece.”(33) Para Schiaparelli, no fim, a moda foi um disfarce: quando você tira a roupa, sua personalidade também se despe e você se converte em uma pessoa totalmente diferente … (34) Não é estra-nho que os espelhos do inverno 1937-38 foram repetidos na primavera de 1939 para a colecão Comedia dell’arte e suas máscaras.A Maison Schiaparelli fechou em 1953 e re-nasceu em 2016 com Diego della Valle. Para a coleção de alta costura outono-inverno 2018-19, o couturier Bertrand Guyon homenageou o 70o aniversário da coleção de inverno 1938-39, reinventando para o século 21, o conjunto Sala de espelhos. O veludo preto original tornou-se agora um rico azul escuro e o bordado dourado, prateado. O vestido longo com costas profun-das foi transformado em uma saia até a altura da panturrilha com abertura até a coxa. O espe-lho de mão não está mais ao redor do pescoço, mas sedutoramente colocado no quadril.Na place Vendome 21, o fantasma de Elsa Schiaparelli continua a segurar uma varinha mágica incitando as mulheres a “atrever-se a ser diferente.”(35)Dilys Blum é Curadora Senior de roupas e têxteis de Jack M. e Annette Y. Friedland no Museu de Arte de Filadéla, em Filadéla (EUA).As referências bibliográcas estão disponíveis neste link. Propaganda de esmaltes assinados pela Elsa Schiaparelli, 1945.Cutex, domínio público.

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Por Elsa SchiaparelliExtraído de Shocking Life (autobiografia) | Publicado em 19541.Já que a maioria das mulheres não se conhecem elas mesmas, deveriam tentar conhecer-se.2. Uma mulher que compra um vestido caro e depois o troca, frequentemente com um resultado desastroso, é esbanjadora e boba.3. A maioria das mulheres (e homens) é daltônica. Eles deveriam pedir sugestões.4. Lembre, 20% das mulheres têm complexo de inferioridade, 70% têm ilusões.5. 90% das pessoas têm medo de chamar a atenção e do que as pessoas vão dizer. Por isso elas compram uma roupa cinza. Elas deveriam tentar ser diferentes.6. As mulheres deveriam ouvir e pedir críticas e conselhos competentes.12 MANDAMENTOS PARA A MULHER7. Elas deveriam escolher suas roupas sozinhas ou em companhia de um homem.8.Elas nunca deveriam fazer compras com outra mulher, pois algumas vezes conscientemente, e frequentemente inconscientemente, há propensão para sentir ciúmes.9. Ela deveria comprar pouco e somente o melhor ou o mais barato.10. Nunca ajuste um vestido para o corpo, mas treine o corpo para que se ajuste ao vestido.11. Uma mulher deve comprar sempre nos lugares onde ela é conhecida e respeitada e não andar sempre em busca de uma nova moda.12.E ela sempre deveria pagar suas contas.17Foto acima de S. Schiaparelli (Wikimedia Commons)

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“Este resultado é fruto de uma pesquisa constante que permitiu descobrir uma nova geração de criativos em territórios inexplorados. Ao longo de sua evolução, Vogue Talents demonstrou com certeza sua capacidade de representar as tendências estética e social que deniram os últimos dez anos de moda internacional: a sustentabilidade em todas as suas formas, o retorno do artesanato e das técnicas esquecidas, o novo étnico que toca o antropológico, a variante da beleza inclusiva, a uidez de gêneros, a apertura a todas as idades e gerações e o novo feminismo social.” (Vogue Itália, 18/07/2019)African Fashion FoundationPagina ao lado, foto de Roberta Annan.Cortesia de Roberta AnnanNesta seção, sempre dedicada a projetos de formação em moda, apre-sentamos a entrevista que realiza-mos com Roberta Annan, fundadora do African Fashion Foundation, um projeto não governamental que tem como principal meta promover o de-sign de moda criado em todo o conti-nente africano. Nós tivemos a grande oportunidade de conferir de perto o resultado de seu trabalho aqui em Mi-lão – já que designers africanos estão cada vez mais presentes na Semana da Moda milanesa -, graças a parcerias e apoios diversos, entre eles o da Vogue Talents que, por sua vez, também é apoiada pela prefeitura de Milão. Aqui cabe um destaque, pois o propósito da Vogue Talents, que já tem treze anos, parte da inovadora Franca Sozzani, que dizia que sua intenção não era “apenas encontrar jovens talentosos, mas apoiá-los também” Devemos sempre lembrar que um dos gran-des desaos dos designers oriundos de países ou regiões que não são protagonistas no mer-cado de moda global é encontrar apoiadores de projetos que miram o futuro. No caso da moda, um setor muito orientado ao hoje dada a velo-cidade com a qual as coisas acontecem, é difícil obter patrocínios, apoios, ou qualquer tipo de suporte nanceiro que permita que marcas ou designers emergentes se estabeleçam e ganhem o mundo para o benefício de todos. Por essa ra-zão, quaisquer ações que se dediquem a reunir forças para dar movimento à moda não centra-lizada, são urgentes e necessárias.Assim, a importância do projeto liderado por Roberta, além dos benefícios à moda africana e aos designers do continente e diáspora, é sua aderência à visão descolonizadora da moda so-bre a qual todos estão atentos, pois sabem que isso representa um grande potencial para a cul-tura de moda em todos os sentidos. Programas como o Vogue Talents e a African Fashion Foundation devem encontrar grupos organiza-dos e com vontade de expandir suas fronteiras na moda.Também vale ressaltar que há poucas sema-nas vivemos um momento histórico: pela pri-meira vez um designer de moda negro e afro-descentente participou da semana de moda de alta-costura parisiense convidado pela própria federação de haute couture. Pyer Moss, a mar-ca do estadunidense Kerby Jean-Raymond, que é lho de imigrantes haitianos, estreou com looks que celebram criações de personagens negros. Kerby foi o vencedor do Vogue Fashion Found 2018, e prova a importância de projetos que visam impulsionar criativos marginaliza-dos que muitas vezes enfrentam um caminho muito mais difícil para o sucesso.18DESCOLONIZAÇÃO DA MODAQUANTOS DESIGNERS AFRICANOS VOCÊ CONHECE?

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(Vogue Itália, 18/07/2019)“Autenticidade deve ser a verdadeira denição de beleza.” - Roberta Annan

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2. Quais são os principais objetivos da African Fashion Foundation? Quem são os principais agentes e investidores? Como os investimentos são mantidos? A African Fashion Foundation é uma organização não governamental que capacita designers de moda e prossionais criativos da África e de suas diásporas para terem sucesso na indústria de moda global. Oferecemos oportunidades de desenvolvimento prossional e educacional em parceria com empresas já estabelecidas na indústria. Na última década, tivemos a oportunidade de trabalhar com marcas, designers, parceiros, apoiadores e outras partes interessadas incríveis do mundo todo. Até o momento, a AFF colocou mais de US $ 1,7 milhão de dólares de investimentos diretos e indiretos em 24 marcas e criativos africanos por meio de parcerias, incluindo Vogue Talents (Scouting for Africa) e o recentemente criado Creative Industry Retreat (Reparação da Indústria Criativa). A maioria de nossos projetos e iniciativas foram nanciados por meio de doações e parcerias com marcas globais de moda, escolas, apoiadores da economia criativa, entre outros.1. Quem é Roberta Annan? Como você começou na indústria da moda?Roberta Annan é uma empreendedora ga-nense apaixonada por criar mudanças e fazer a diferença nos países africanos por meio do im-pacto social. Ao longo da minha carreira, meus principais focos foram em investimentos de im-pacto e lantropia. Também me mantive com-prometida em empoderar mulheres, defender a igualdade de gênero, proteção ambiental, sus-tentabilidade, acabar com o desemprego juve-nil e com a defesa do crescimento da economia criativa da África. Acredito na construção de relacionamentos de longo prazo, descobrindo talentos e investindo nas pessoas. O principal motivo de mudar para Gana em 2012 foi con-tribuir para o crescimento e desenvolvimento do continente africano. Depois de trabalhar de perto com Franca Sozzani na Vogue Italia na edição Rebranding Africa e obter percepções em primeira mão sobre as disparidades dentro da indústria, quei mais convencida da necessi-dade de implementar uma solução orientada de impacto para a economia criativa no país.Primeira edição do evento ‘Retiro da Industria Criativa’Cortesia de Roberta Annan20

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3. Quais são os principais desaos da indústria de moda africana e como a AFF criou soluções criativas relevantes para essa indústria? Um dos principais desaos é a falta de infra-estrutura. A indústria precisa de mais veículos e mecanismos para construir um ecossistema sustentável. Também precisamos de mais parce-rias e colaborações com as partes interessadas. Atualmente, a indústria é uma mistura desor-ganizada de prossionais e empresas criativas, acadêmicos, entre outros. Podemos mudar essa narrativa com base em nossos valores essen-ciais: convocar, colaborar e cultivar. Organizar o primeiro Reparação da Indústria Criativa na África Ocidental, que reuniu vários dos prin-cipais prossionais da indústria e partes inte-ressadas da África para discutir o progresso da indústria criativa foi a prova do impacto que po-demos causar por meio da colaboração. Como parte dos objetivos da Reparação da Indústria, apresentamos as próximas etapas e alguns com-promissos que a AFF vai implementar de forma colaborativa com outras partes interessadas. No contexto do desenvolvimento, alcançar o sucesso dependerá de um ecossistema aprimora-do. Investir em infraestrutura é muito vital para o sucesso da economia da África e até que mobi-lizem os recursos para a construção de estruturas relevantes e mecanismos de apoio, nossos esfor-ços serão lançados ao vento. Ao investir em capacitação, desenvolvimen-to comunitário, desenvolvimento de infraestru-tura, aproveitando nosso artesanato tradicional único e antigo, tendo em mente a essência da sustentabilidade, seremos capazes de desenvol-ver a indústria e criar mais oportunidades de emprego em toda a cadeia de valor para resol-ver o desemprego juvenil.4. Do seu ponto de vista, qual é o papel do continente africano na indústria da moda? E o impacto de novos talentos africanos? Sem dúvida, a África desempenhou um pa-pel crucial na evolução da indústria da moda global. O continente africano possui um gran-de potencial, com uma crescente população de jovem de criativos, talentosos e inovadores que estão causando um grande impacto local e internacional. Os designers estão começan-do a apreciar o valor de ser socialmente res-ponsável e as marcas estão se envolvendo em práticas éticas e sustentáveis. Muitas marcas também estão aproveitando o enorme poten-cial inexplorado das comunidades artesanais locais, capacitando-as e criando oportuni-dades para que prosperem globalmente. Os designers estão fundindo nossas tradições, cultura e artes em produtos de luxo contem-porâneos e modernos que reetem a verda-deira essência da herança da África. Mais im-portante, esses talentos africanos emergentes estão assumindo o controle de nossa narrati-va: contando nossas histórias, navegando em nossos desaos, preservando nossas raízes, mostrando a beleza do nosso continente e criando o futuro. 5. Nesta edição vamos falar sobre beleza, então gostaríamos de saber se você acredita que é possível estabelecer um padrão de beleza africano e como a globalização afetou esses padrões. Autenticidade deve ser a verdadeira denição de beleza.Evento da Vogue Talents em 2019. Roupas da designer sulafricana Thebe Magugu.Fashion for Future21

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6. O que contribuiu para o sucesso do projeto da AFF? Por exemplo, algumas parcerias importantes como a recém nomeação como membro do conselho do Conde Nast College of Fashion e do Design Advisory Council. AFF tornou-se um líder em recursos e um parceiro estra-tégico conável para marcas africanas e marcas de luxo convencionais no continente por muitas razões. Acho que um dos principais fatores que contribuíram para a nossa história de sucesso é a nossa abordagem para capacitar os criadores dentro da economia criativa da África, encontran-do soluções relevantes para os inúmeros desaos que eles enfrentam e sendo capazes de criar caminhos para o cresci-mento. Nos últimos dez anos, empreendemos uma série de iniciativas, incluindo um pro-grama de bolsas que levou de-signers e marcas africanas em ascensão, como Kenneth Ize, a um público internacional por meio de parceiros como LVMH; o trabalho do designer Pappa Oppong com a varejista americana Macy’s; e um pro-grama de bolsas que aprofunda o envolvimento entre as princi-pais marcas de moda africanas e as principais marcas e vare-jistas de luxo europeus. Minha nomeação como membro do conselho consul-tivo do Conde Nast College of Fashion rearma o trabalho que fazemos na AFF e a neces-sidade de “descolonizar” a edu-cação de moda e criar um am-biente mais diverso e inclusivo, especialmente para que mais estilistas africanos tenham acesso a informações de pon-ta e ferramentas educacionais que permitirão que se tornem mais competitivos em um mercado em rápida evolução. Para mim, signica trazer perspectivas afri-canas e fornecer mais oportunidades para a próxima geração de talentos africanos. 7. Como você acredita que a indústria africana deve ser retratada na mídia internacional? Como a AFF atua fora do continente africano, em países com fortes laços com a diáspora africana como o Brasil? Qual a importância de valorizar essa cultura ao redor do mundo? Continuamos a aumentar o leque de oportunidades para criativos africanos, expandindo nossas parcerias de aliados em todo o mundo. Também estamos empenhados em encontrar caminhos para colaborar com outras partes interessadas e comunidades com fortes laços com a África. Acho que é importante para a mídia internacional apresentar nossas contribuições inestimáveis para a indústria da moda global e os avanços que continuamos a fazer na frente local e internacional.Roberta Annan em evento Cortesia de Roberta Annan22

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Roberta Annan em evento Cortesia de Roberta Annan23A BELEZA NEGRAPor: Julia VidalNana Benz nos anos 1970. Togo Archives23cultura_de_modaAo longo da história, a beleza esteve relacionada ao sagrado, seja sob perspectiva de povos originários africanos, indígenas brasileiros ou até mesmo europeus. Porém, com o passar do tempo, algumas sociedades - como a europeia - criaram uma separação entre a dimensão do belo e a dimensão do sagrado. Já as culturas ancestrais, cujas visões de mundo são antagônicas à cosmovisão eurocêntrica e ocidental, mantiveram uma relação intrínseca entre beleza, sagrado, ancestralidade e espiritualidade. Para os povos indígenas, a beleza é uma materialização da própria divindade, ela se relaciona à vida, às cores da natureza, à arte e à manifestação da ancestralidade no tempo presente. Através das diversas manifestações estéticas que pousam sobre o corpo humano, podemos perceber uma “incorporação” do sagrado e da divindade de um povo como parte da sua identidade cultural ao longo de suas gerações. Como exemplo, podemos compreender essas “manifestações” de beleza nas coberturas dos corpos indígenas brasileiros através do grasmo. Durante os meus estudos, a indígena Mônica Manau me corrigiu quando eu falava sobre os grasmos enquanto representações estéticas, e me disse que os grasmos são “decodicações espirituais”. A partir deste olhar mais ampliado, que compreende uma visão de mundo em que o humano não se distancia do espiritual, pode-mos compreender que tudo que vestimos ou até criamos deve ser belo, sendo a beleza o re-sultado da manifestação de nossa divindade criativa, de uma cultura e estética ancestrais.Contudo, nos últimos cinco séculos da exis-tência humana, fomos apresentados à beleza enquanto um padrão que parte de uma fala eloquente e hegemônica da visão de mundo ocidental, pautada na referência europeia. Essa reservou o lugar do “outro” e atribuiu o estereótipo da estética exótica às dimensões de beleza oriundas das cosmovisões de mundo africanas, indígenas e asiáticas.

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2424Marcha em São Paulo no dia da mulher Afro Latinamericana e Afro Caribenha, 2017. Nelson Antoine (Shutterstock)Dessa forma, o que precisamos car atentos é que por trás da imposição estética de um padrão de beleza, está em curso uma espécie de “projeto político e econômico” de manutenção de poder que busca suprimir a diversidade e marginalizar a intelectualidade das demais dimensões de be-leza, que fogem do padrão estabelecido.Colocar todos em uma caixa tem sido um tra-balho recorrente do setor da moda, que cons-trói discursos universais excludentes. O que ca evidente na não aceitação da diversidade de tipos físicos e de belezas diversas é a necessi-dade do controle ao corpo, como a materializa-ção de um projeto colonial, que restringe a ex-pressão e a manifestação da própria identidade e de códigos socioculturais. Através do cultivo da monocultura da beleza eurocêntrica, está a crescente produção da indústria têxtil e de moda que busca conquistar o grande mercado consumidor representados pelos países do sul. Porém, quando adentramos as sociedades originárias que mantêm as agências de seus códigos socioculturais, podemos perceber que o corpo é protagonista e emite suas mensagens através da beleza. Nota-se em várias culturas africanas a valorização do corpo gordo enquanto belo, próspero e abundante. Essa beleza cultivada tradicionalmente entre a realeza africana também pode ser percebida entre as comerciantes de têxteis africanos como as chamadas “Nanas Benz”, por exemplo. Ao longo dos anos 1980 e 1990, essas foram as primeiras mulheres milionárias ou até bilionárias do continente africano, fato que marcou a emancipação feminina cujo apelido era uma referência à importação para o Togo dos primeiros automóveis alemães Mercedes Benz. Entre essas poderosas comerciantes, o corpo grande e volumoso era a própria dimensão da beleza e um símbolo de sua prosperidade.No Brasil, essa é uma relação que podemos fazer. Mesmo que inconscientes aos corpos de descendentes africanos, as curvas e volumes estão presentes enquanto aspecto cultural e recentemente têm chegado às propagandas e às passarelas de moda brasileiras, nalmente representando a diversidade da beleza do país.A beleza negra busca sua representatividade desde a década de 1970. Foi a partir deste perí-odo que aspectos do corpo negro historicamen-te marginalizado - como cabelo, nariz, cor da pele, assim como suas vestes e adornos, cores e estampas -, se tornaram símbolos de uma luta política e social. A valorização dessas caracte-rísticas no contexto nacional deve-se ao eco do movimento Black Power dos anos 1960 nos EUA. Esse momento histórico marcou a liber-tação de um corpo esteticamente apagado pela ideologia do embranquecimento, do início do século 20, em que o cabelo crespo e a pele preta

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25Foto acima: cortesia de Julia VidalJulia Vidal é designer gráco e de moda, educadora e pesquisadora especializada nas etnias culturais brasileiras. Pós -graduada em História – África Brasil, laços e diferenças, mestra em Relações Étnicorraciais e gestora da marca que leva seu próprio nome Julia Vidal .: Etnias Culturais, e tem como propósito desenvolver marcas e produtos de moda e educação que valorizam a diversidade cultural brasileira. É escritora de 4 publicações onde aborda as temáticas da moda e do design afro e indígena brasileiros, idealiza cursos de moda pluricultural como docente do curso/graduação de Design de Moda no Istituto Europeo de Design Brasil, é membro da Universidade Indígena Pluriétnica Aldeia Marakanà e, a partir de 2021, idealizou e coordena a Escola de Moda Pluricultural, Ewa Poranga. É laureada pelo prêmio de Economia Criativa do MINC e reconhecida internacionalmente com o prêmio Empresas inspiradoras ao redor do mundo pela Shell Live Wire.foram os primeiros alvos do projeto de genocí-dio cientíco negro, anunciado nos congressos internacionais interraciais, que apresentaram os reexos da eugenia europeia no Brasil. A partir dos anos 1930, uma nova lingua-gem estética compôs o discurso da democracia racial, que apresentou o orgulho da mestiça-gem como a solução para a incorporação do negro e de sua beleza na sociedade. Todavia, não devemos deixar de lembrar que a partir de então caram reforçadas as narrativas po-sitivadas relacionadas à hiper sexualização de pessoas negras e de seus corpos. Assim, ao longo da história de povos colo-nizados, podemos compreender que seu corpo e sua beleza foram historicamente regulados e inferiorizados e que mais recentemente, se apresentam como espaços de transgressão e emancipação, transformando sua não existên-cia em presença e ação política. Como diz a au-tora Nilma Lino Gomes no livro O Movimento Negro Educador, a produção de “saberes es-tético-corpóreos” apresentam a “estética como forma de sentir o mundo, como corporeidade e como forma de viver o corpo no mundo”. De agora em diante acredito ser interessante o convite para nos libertarmos das normas e pa-drões concebidos historicamente, e entramos em um processo de enriquecimento cultural, para compreendermos a dimensão da beleza a partir das diversas cosmovisões e não nos restringindo ao que a indústria do capital e do consumo busca impor. Libertar-se física e emocionalmente, para ler a beleza a partir das diversas lentes possíveis.Esse vem sendo um processo que venho desenvolvendo ao longo dos anos como edu-cadora, consultora e designer de moda. Uma caminhada que conui para o nascimento de uma escola de moda pluricultural que traz como seu nome beleza: Ewa Poranga, que sig-nica beleza nas línguas Yoruba e Tupi antigo, respectivamente. A escola nasce para costurar e construir pontes entre visões de mundo, sem protagonismos e hierarquias, mas com res-peito às mais diversas formas de beleza que a criatividade humana pode materializar quan-do conectadas à natureza criativa, à expressão da essência humana e da natureza que o cerca. Mesmo que inconscientes aos corpos de descendentes africanos, as curvas e volumes estão presentes enquanto aspecto cultural e recentemente têm chegado às propagandas e às passarelas de moda brasileiras, nalmente representando a diversidade da beleza do país.

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cultura_de_modaBELEZA ALTERNATIVA: ALT IS THE NEW BLACKOs estilos alternativos manifestam o poder da moda como propulsora de comunidades e identificações, que permeiam décadas e olhares maldosos de quem não compreende as diferenças. Quebrando os padrões de beleza e externalizando sentimentos por meio de roupas, acessórios e maquiagens, as subculturas representam resistência em um mundo que cada vez mais impõe uma norma padrão. Contudo, mostram que a melhor maneira de se vestir é sendo você mesmo. “Quantas coisas na vida a gente tem a oportunidade de fazer e dizer que é realmente por nós mesmos?”. A frase é de Vitória Barros, 27 anos, lolita que mora em Belo Horizonte, mas esse é um sentimento compartilhado por diversas meninas que fazem parte de estilos alternativos ao redor do mundo. Libertação, auto expressão e lifestyle foram outras palavras usadas para descrever a relação dessas garotas com a moda que rompe todo e qualquer laço com os padrões de beleza. Sejam elas derivadas da cultura pop japonesa ou explorando conotações mais sexuais, como no caso das pin-ups, as subculturas são as mais genuínas formas de se expressar e de externalizar emoções.

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“O  termo  subculturas  surge  juntamente  coma  consolidação  da  cultura  jovem  a  partir  dosanos  1960.  O  fim  de  uma  cultura  hegemônica,associada ao poder político, religioso, econômicoe à família, foi contestado pelos jovens a partirdesse  período,  e  com  isso  os  grupos  juvenispassaram  a  construir  sua  própria  ideia  decultura. O  sentido de subcultura é o de ser umfragmento dentro do universo da cultura, já quenão existe mais uma hegemonia neste aspecto”,explica Maria Eduarda  Guimarães,  doutora emCiências Sociais  pela Universidade Estadual deCampinas e docente do curso de Design de Modado Centro Universitário do Senac.Por  meio  de  práticas  culturais,  musicais,literárias,  ideológicas  e  do  modo  de  se  vestire  portar,  as  tribos  urbanas  (termo  criado  pelosociólogo  francês  Michel  Maesoli)  simbolizammuito mais  do que  a  ideia de  rebeldia na  qual éestigmatizada.  A  sensação  de  pertencimento,a  coletividade  e  o  espaço  para  se  expressar  sãomuito  valorizados  pelos  seus  integrantes,  queinicialmente se apropriaram dos espaços urbanose  agora  são  muito  frequentes  na  internet.  “Anecessidade  de  pertencer  a  um  grupo,  que  écaracterístico  da  sociabilidade  humana  e  muitopresente  entre  os  jovens,  e  que  antes  poderiaser  uma  igreja,  um  partido  político  ou  umanação,  por  exemplo,  foi  substituída  por  essaspráticas  culturais.  Essas  associações  que  atéos  anos  2000  aconteciam  majoritariamente  narua,  espaço  de  surgimento  da  maior  parte  dassubculturas  até  esse  período,  hoje  migrou  parao espaço virtual das redes sociais, mas os jovenscontinuam necessitando ter um grupo para dividirsuas  experiências,  frustrações  e  formas  de  ver  omundo”, complementa a antropóloga.REVOLUÇÃO DA FOFURA E OSEXY SEM SER VULGARSe  tratando  de  subculturas  especícas,  umdos  maiores  símbolos  da  cultura  pop  japonesae  uma  das  principais  ideologias  exportadas  peloJapão  é  o  movimento  kawaii, que representa tudo aquilo que é meigo, delicado e gracioso. Essetermo, que surgiu na década de 1970, marcou umtipo  de  caligraa  onde  a  fofura  predominava,  ese  popularizou  nas  escolas  como  uma  forma  dedesaar a rigidez imposta pelo sistema pedagógicojaponês. Atualmente é uma expressão cultural queinuencia desde a publicidade (como a criação depersonagens como Hello Kitty, símbolo máximo datendência) até um dos estilos mais populares nasruas de Harajuku, bairro de Tóquio que simbolizao coração dos movimentos alternativos: as Lolitas.Cabelos  cacheados,  franjinhas,  vestidosfranzidos  com  muito  babado  de  alta  qualidade,decotes fechados e a pele coberta por acessóriosde  cor  pastel  são  os  principais  elementos  desteestilo,  que  também  é  inuenciado  por  períodoshistóricos como o Rococó, o movimento artísticoiluminista, e a Era Vitoriana, com inspiração nosgrandes vestidos da aristocracia europeia. Mesmoque pareça uma fantasia, é preciso enfatizar que amoda de subculturas se trata de um estilo de vida,que  ultrapassa  a  aparência  estética:  “por  maisque seja bem diferente, o objetivo não é ser umafantasia. Eu não estou fantasiada de lolita. É umamoda, que tem características próprias que passamuito  pela  criatividade  de  quem  usa”  enfatizaVitória Barros.Fotos da pagina anterior e acima: Marcello Garcia  Figurino: Bettie Page Lingerie - Instagram: @murderqueen27

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Apesar de no ocidente o termo lolita ainda ser muito associado ao livro e lme do autor Vladimir Nomokov, a moda lolita não tem nada a ver com a sexualização infantil, ou com o que chamam de “síndrome do Peter Pan” e a vontade de não amadurecer. É sobre “exercitar sua feminilidade e criatividade em um lugar onde a sociedade não te apoia, não é sobre se sentir infantil”, comenta a lolita de Minas Gerais, que também descreve a comunidade como uma “possibilidade de se expressar de outras maneiras e uma oportunidade para colocar para fora o que sente por dentro, o que gostaria de ser ou o que é”.A canadense Andalina também conta que “lolita surgiu como uma resposta e protesto perante as rígidas expectativas que a sociedade tem da mulher, e vai contra a sexualização do corpo feminino e dos papéis de gênero”, ou seja, é sobre se vestir para si mesma e subverter a obrigatoriedade de usar roupas para ser bem aceita pela sociedade, sobretudo por homens, já que o matrimônio é muito importante na sociedade japonesa que é extremamente patriarcal. “Ter um estilo alternativo não é só sobre se sentir estilosa, é um ato político que desaa a moda mainstream e os padrões de beleza impostos pela sociedade”, complementa ela.“Exercitar sua feminilidade e criatividade em um lugar onde a sociedade não te apoia, não é sobre se sentir infantil”- Vitória BarrosDe forma antagônica ao estilo fonho que valoriza a feminilidade da aparência de “boa menina” das lolitas, existe um outra subcultura que desaa o olhar da sociedade perante a gura da mulher, e caminha entre a inocência e a atitude, além de representar o empoderamento feminino em épocas onde um simples decote era considerado um atentado ao pudor.Pin-up é um estilo que surgiu nos anos 1930, por meio de desenhos de mulheres sensuais com ares inocentes que ilustravam calendários e pôsteres que eram pendurados (daí vem o nome pin-up, que traduzido signica “pendurar”) nos alojamentos dos homens que iam para guerra. Na maioria das vezes sorrindo e cercadas por elementos do universo masculino, como carros e motos, as pin-ups eram elevadas ao patamar de desejo da gura masculina. Bettie Page, rainha desse movimento que se tornou um dos maiores sex symbols da década de 1950 e 1960, incorporou as ilustrações em seus ensaios, que com tons eróticos exibiam suas curvas e seu longo cabelo preto com franja. Tudo isso logo se tornou grande tendência dessa subcultura junto com o batom vermelho e um delineado marcante.“Sempre achei a gura da pin-up muito intrigante pois surgiu numa época em que a sociedade ainda era (muito mais) machista e moralista, sendo uma expressão de sensualidade e irreverência que ia contra os padrões do período. Para mim é algo que vai muito além do visual e me sinto totalmente imersa nesse universo, envolvendo música, lifestyle, cultura, cinema, fotograa, história, moda”, explica Larissa que se apresenta nas redes sociais pelo nome Murder Queen. Ela, que também é modelo é fundadora de uma marca que carrega o estilo, e complementa: “Nunca fui muito fã de me prender a regras e normas, então sempre me interessei muito por subculturas e por esse lado mais ‘rebelde’ e revolucionário da sociedade”.Além de Bettie Page, a dançarina burlesca Dita Lolita e blogueira @andalina._28

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Von Teese, Marilyn Monroe e Amy Winehouse simbolizam essa estética que é extremamente ligada ao feminismo, já que nasceu na mulher independente pós guerra, e já desaava uma sociedade que considerada ofensivo mulheres usarem roupas provocantes. “Pin-up signica abraçar sua feminilidade de qualquer maneira. Quer mostrar suas curvas? Mostre! Quer colocá-las em um vestido ou calça que as valorizem? Faça isso! Essa é a melhor coisa sobre a cultura pin-up: te fazer sentir livre de estigmas que a sociedade ou a indústria da moda não quer nos ver livre”. Apesar de empoderador, algumas mulheres dessas comunidades ainda enfrentam preconceitos ou falsas percepções de que agir com atitude é passe-livre para assédios: “Muitas vezes eu enfrento abusos verbais, olhares sujos e lido com pessoas pensando que não há problema em me fotografar sem meu consentimento. Também já tive que lidar com situações em que ocorreu assédio físico”, lamenta Amber, modelo inglesa de 24 anos, que como muitas outras meninas ultrapassa as agressões por sentimentos de empoderamento por meio da moda: “apesar de enfrentar o assédio, ainda sinto que me expressar por meio do estilo é essencial. Me sentir bem comigo mesma é muito mais importante do que permitir que as opiniões alheias me afetem”.Além disso, a necessidade de se expressar através das roupas é visto em práticas do it yourself, e muitas meninas fazem as próprias roupas ou misturam diversas vertentes da mesma tribo para se sentirem únicas. “Eu gosto muito de criar combinações novas com as mesmas peças, entender quais peças combinam melhor uma com a outra e quais não, customizar roupas, renovar peças antigas. Eu acho que nunca tive muita diculdade em encontrar roupas que eu me identicasse porque eu poderia criar elas.” explica a modelo alternativa Domênia Cândido. Ela também conta que os olhares feios que recebia na rua não a incomodam mais, pois se sente segura de quem é: “eu nunca fui fã dos padrões de beleza, nunca senti que tinha algo ali pra mim, eu gosto de fazer as coisas do meu jeito, e denir se aquilo é bonito pra mim ou não. Eu sou uma pessoa extremamente criativa e sinto que posso colocar pra fora, expressar na minha aparência toda essa criatividade que eu tenho. É realmente algo libertador.” O goticismo ou o punk, por exemplo, apesar de serem duas subculturas mais popularizadas que inspiraram artistas como Vivienne Westwood (que também ertava com o estilo das lolitas) ou até a banda Sex Pistols, que elevou o punk ao mainstream, também recebem estigmas que colocam seus participantes como pessoas satanistas (devido à aparência dark) ou até rejeitadas. “As subculturas não são sinônimo de violência ou incorreção, mas sim de uma experiência compartilhada de estar no mundo, que pode ser ter uma longa ou curta duração, mas que faz sentido na vida desses jovens no momento em que estão associados a ela” explica a doutora Maria Eduarda Guimarães. O que muitos não sabem, é que a cor preta e os elementos rebeldes que circundam o universo alternativo são fortemente associados à forma que essas pessoas encontraram de expressar toda a indignação perante a sociedade que vivem. Nas passarelas internacionais, além de Vivienne Westwood, nomes como John Galliano, Alexander McQueen e Demna Gvasalia já foram responsáveis por construir narrativas que ertavam com as subculturas elevando-as ao patamar do luxo, mostrando que mesmo ainda muito estigmatizadas, a moda também é meio de expressão.Mel Gabardo. Figurino: Jeronima BacoBettie Page Lingerie e Ellie Shoes29

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AS INFLUENCIADORAS DA BELEZAQualquer pessoa que esteja minimamente conectada ao mundo digital já deve ter ouvido falar em Kylie Jenner, personalidade dona da quarta conta mais seguida do Instagram, com 250 milhões de fãs. A fama, que decorre de sua da participação no fashion_businessreality show norte-americano Keeping Up with the Kardashians, foi o trampolim para o sucesso de sua marca de cosméticos própria, a Kylie Cosmetics. Isso fez dela, em 2019 e com apenas 22 anos, a bilionária mais jovema da história, de acordo com a revista Forbes. Mas é não só a televisão que torna famo-sas as novas empresárias da beleza. As redes sociais possuem o poder de promover “anô-nimas” que mostram suas vidas “normais” para milhões de seguidores e, nas redes, as dicas de beleza e cosméticos estão entre os conteúdos mais compartilhados. Esse fenô-meno de dicas entre amigas e conhecidas sobre maquiagem e cuidados da pele é histo-ricamente popular: o sucesso do modelo de negócios da Avon é a prova disso. Criada no final do século 19, a promoção e venda “por-ta-a-porta” aposta em amigas vendendo para amigas e, a diferença entre os dias de hoje, é que o alcance é muito maior no mundo di-gital ou “suas amigas” podem ser muitas e morar mais longe. Um exemplo de êxito nas redes sociais, é a pioneira norte-americana Huda Kattan, que dá dicas de beleza desde 2013 e também possui uma marca de cosmé-ticos, a Huda Beauty. Com quase 50 milhões de seguidores no Instagram, a empresária também foi listada na Forbes como uma das mulheres mais ricas dos Estados Unidos. Uma das autoridades quando assunto é a indústria da beleza, é a jornalista, blogueira e inuenciadora brasileira Vic Ceridono, que além de ser ex-editora de beleza da Vogue, possui o blog Dia de Beautè há 14 anos. Em entrevista exclusiva para a Unsatisfashion, Vic explica que acabou se tornando um caminho natural para as inuenciadoras criarem suas próprias marcas. Além de possuírem uma comunidade nichada e engajada, a indústria da beleza e do varejo mudou muito. “O fenômeno da marca nicho ou indie, tem muito a ver com a facilidade da internet, onde você cria seu próprio site de vendas ou rede social, e assim, você não precisa mais convencer, por exemplo, a Sephora que você é bom para entrar no mercado e vender em sua loja. Além disso, antes havia poucos players muito grandes na indústria da beleza e, hoje em dia, há muitos fornecedores e empresas pequenas.” Empresária e influenciadora Kylie Jenner.Hayu (Wikimedia Commons)O BUSINESS PROMISSOR DA INDÚSTRIA DE COSMÉTICOS E DAS INFLUENCIADORAS. 31

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“O fenômeno da marca nicho ou indie tem muito a ver com a facilidade da internet, onde você cria seu próprio site e rede social, e por isso, você não precisa mais convencer, por exemplo, a Sephora que você é bom para entrar no mercado.” - Vic CeridonoVic Ceridono. Cortesia de Vic CeridonoEsses fornecedores menores são capazes de fabricar menos produtos e, segundo Vic, “uma marca de cosméticos não precisa mais lançar um line-up de produtos completo”, mas sim, poucos produtos que fazem sentido para aquela audiência especíca. No Brasil, há um grande espaço para esse business das inuencers da beleza, já que o país possui o quarto maior mercado de beleza no mundo, de acordo com o Euromonitor em 2019. Inuencers com o foco em promover cos-méticos são inúmeras, e muitas delas já criaram suas próprias marcas de cosméticos. Alguns exemplos são, Mila Cabral, Bianca Andrade, Mariana Saad, Camila Coelho, Julia Petit, Ca-mila Coutinho e até a Helena Bordon, blogueira que produzia mais conteúdos sobre moda e que abriu sua própria marca recentemente, a Hela Beauty, focada em cuidados com a pele. Todo esse movimento mostra a expertise e capacidade de produção dos fornecedores que na sua maioria são nacionais, mas ainda há obstáculos a superar. Sadi Consati, maquiador e consultor de maquiagem para O Boticário há quase 25 anos, arma que a indústria brasileira de cosméticos atingiu uma alta qualidade ape-sar de alguns grupos ainda valorizarem cosmé-ticos importados. “A maquiagem de algumas marcas nacionais é extremamente tecnológica e não deixa absolutamente nada a desejar para os importados. Eu trabalho numa empresa onde frequentemente fazemos testes às cegas comparando nossos produtos com importados e sempre temos uma performance superior.“MARCAS E INFLUENCIADORASMesmo com as marcas próprias, as inuen-ciadoras continuam fazendo publicidade das marcas de cosméticos tradicionais. A dinâmica mudou, e não existe uma ideia de concorrência entre marcas grandes e marcas nicho. Segundo Vic, um exemplo disso é a icônica maquiadora francesa Violette, que possui sua própria mar-ca de maquiagem, e recentemente se tornou diretora criativa da marca Guerlain, uma tradi-cional empresa francesa de cosméticos de alta qualidade. Ou seja, as duas marcas coexistem com a mesma diretora, porém com visões dife-rentes do mercado. “A marca de Violette é uma marca pessoal, com seu gosto. A direção na Guerlain possui a sua visão, porém sobre uma marca histórica, com valores e um mercado já pré-estabelecido”.Não temos dúvidas que a combinação in-uencers + indústria da beleza é um fenômeno que deu muito certo. De acordo com o relatório The State of Inuencer Marketing, produzido pela Launchmetrics, 55% das vendas de cos-méticos proveniente das propagandas (online, social e impressa) são realizadas por meio das inuencers digitais, contra somente 17% das vendas de roupas e acessórios. Não é à toa que marcas tradicionais da indústria da beleza es-tão investindo cada vez mais em promover seus produtos com as inuencers: de acordo com a revista Forbes, em 2017 a indústria investiu em torno de 2 bilhões de dólares e, em 2019, o investimento cresceu para 8 bilhões, com uma previsão para subir para 15 bilhões de dólares em 2022. Além disso, a Estée Lauder arma gastar 75% do seu orçamento de marketing com as inuencers digitais. 32

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“ As marcas tem que tomar um cuidado muito grande e usar critérios bem selecionados para associar a sua imagem com a da inuencer. É preciso ter conectividade e representação, não apenas numero de seguidores.”- Sadi ConsatiSegundo Sadi Consati, hoje é o melhor mo-mento para as inuenciadoras digitais, já que as marcas as estão valorizando mais do que as campanhas tradicionais, e que a criação de inúmeras linhas e novas marcas de cosméti-cos estão democratizando o futuro da beleza, dando mais opções para os consumidores. Por isso, Sadi arma que as marcas devem ter um posicionamento para se sustentar nessa alta concorrência, criando um vínculo emocional com os consumidores e, assim, as inuencia-doras são a chave para se aproximar desse pú-blico. Porém, deve existir um cuidado na esco-lha dessas embaixadoras e “usar critérios bem selecionados para associar a sua imagem com a da inuencer. É preciso ter conectividade e representação, não apenas número de segui-dores”, diz Sadi. Vic Ceridono também dá dicas em como uma marca deve escolher sua inuenciadora, o que, segundo ela, não deve depender somente do número de seguidores. “Denitivamente a coisa mais importante é escolher uma inuen-ciadora que você (marca) goste do conteúdo que ela faz, pois a marca não terá tanto contro-le sobre o que ela vai falar. Se a marca quiser ter total controle, deve contratar uma modelo/atriz e fazer uma publicidade tradicional, onde a personalidade da pessoa não fará parte da publicidade. A marca tem que conar na pes-soa que está escolhendo como inuenciadora. Hoje em dia a inuenciadora virou uma das publicidades mais importantes, mas os depar-tamentos de marketing ainda têm diculdade em perder um pouco desse controle.” INVESTIMENTO EM MARKETING DE INFLUENCER PELA INDÚSTRIA DA BELEZA2017 2019 2022 US$ 2 BI US$ 8 BI US$ 15 BI Fonte: ForbesO ENGAJAMENTO E A BELEZA O desao das inuenciadoras é engajar seu público mostrando sua vida real. Segundo Vic, quando ela criou seu blog em 2007 e já traba-lhava como jornalista na Vogue, ela via um “des-compasso das revistas com as modelos usando produtos com uma beleza mais inalcançável, já o blog (Dia de Beautè) tem essa ponte com a vida real, e mostra dicas para pessoas reais que às vezes não tem tempo e nem paciência para se maquiar, mas querem fazer algo.” Mas é inevitável não pensar em algumas in-uenciadoras que mostram uma beleza quase inalcançável e estão sempre perfeitas, o que “Eu via um descompasso das revistas com as modelos usando produtos com uma beleza mais inalcançável, já o blog tem essa ponte com a vida real.”- Vic Ceridono33

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faz o público se questionar se aquela perfeição é real. O maquiador Sadi dá sua opinião sobre o assunto: “Eu acho que algumas [inuenciadoras]impõem um padrão real por serem autênticas e mostrarem as coisas de uma forma mais ‘vida real’, e isso é muito legal. Por outro lado, temos um outro grupo que mostra uma vida um pou-co ‘perfeitinha demais’, e aí ca sempre aquela expectativa inatingível, que ao invés de ajudar, acaba frustrando muito algumas pessoas.” Já Vic, que vive na pele a pressão de ter que gravar vídeos e conteúdo todo o tempo, explica: “As pessoas não levam tanto em consideração que a gente têm que colocar a nossa cara e gra-var vídeos o tempo todo. É um negócio que traz uma certa pressão, há dias que você não está se sentindo incrível mas você “tem que” gravar. (...) O que engaja é a verdade. As inuenciadoras que eu conheço pessoalmente são reais. Se já é difícil ser você mesmo nas redes sociais, é mais difícil ainda ser um personagem o tempo inteiro.”Fotos: Cortesia de Vic Ceridono e Sadi Consati, respectivamente.34Sadi Consati (@sadiconsati) é Beauty Artist, Consultor de Desenvolvimento de Maquiagem para O Boticário e professor de especialização em maquiagem na Escola Madre/ Conhecimento Criativo, em São Paulo.Formado na escola MUD – Make-Up Designory de Nova Iorque, tem no currículo vários cursos de especialização e atualização internacional. É Maquiador e Consultor de Desenvolvimento de Maquiagem das marcas Make B e Intense de O Boticário há 25 anos. Atuando como porta voz e consultor no desenvolvimento de produtos.Na TV, atuou nas séries de beleza, na MTV, Discovery Home & Health e Rede Globo. Louca por maquiagem, Victoria Ceridono (@vicceridono) é jornalista, blogger e autora do livro best seller Dia de Beauté: Um Guia de Maquiagem para a Vida Real.Vic, que é considerada uma das autoridades do jornalismo de beleza no Brasil, além de ser uma das digital inuencers mais renomadas e requisitadas do mercado, lançou o blog Dia de Beauté em 2007 e foi editora de beleza da revista Vogue por sete anos. Nascida em São Paulo, ela atualmente mora em Londres.O Dia de Beauté fala sobre o universo da beleza de maneira pessoal, prática e descontraída, sempre com um olhar insider, e foi citado como um dos blogs de beleza mais inuentes do mundo pelo WGSN.

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André-Adolphe-Eugène Disdéri (França, Paris 1819–1889). Foto de domínio públicohoje_moda35A FOTOGRAFIA E A VAIDADEPor: Salete Santosiluminação e poses bem elaboradas, como Félix Nadar, Ettiene Carjat e Julia M. Cameron. A segunda etapa, corresponde à invenção do carte-de-visite - cartão de visita fotográco - por Adolphe Disdéri, que por volta de 1854, colocou ao alcance de pessoas comuns o que até aquele mo-mento era privilégio de poucos. Rapidamente tor-nou-se uma febre graças aos seus valores atraen-tes, pois com a câmera fotográca de quatro lentes era possível obter oito retratos em apenas uma chapa de vidro. Isso estimulou a troca entre ami-gos, familiares e colecionadores, que com as fotos se confraternizavam, e conferiam ao fotografado um certo status social e muitas vezes, continham dedicatórias e eram datados. Ao contrário das primeiras fotograas que se concentravam no rosto, Disdéri fotografava o cliente de corpo inteiro, assim outro grande atra-tivo do seu estúdio fotográco era seu cenário, onde recriava ambientações pretensamente re-quintadas com a utilização de acessórios. Além A tão popular e adorada Sele (abreviação da expressão self-portrait photograph, em portu-guês: autorretrato fotográco) tem como matéria--prima a vaidade e o culto ao corpo, e teve suas origens no século 19, época em que a burguesia era uma classe em ascensão e buscava ansiosa por meios de se auto representar. Esta, encontrou na fotograa, anunciada em 1839, uma forma de re-solver seus anseios, tornando-se em pouco anos a maior consumidora de retratos fotográcos. Até então a arte de retratar se dava por meio da pintu-ra, e estava ligada à classe dominante, como os reis e políticos de grande inuência.A chegada da fotograa rapidamente alterou este cenário, mas, numa primeira fase, de 1839 a 1850, o interesse pela fotograa ainda se restrin-gia a um pequeno número de clientes como per-sonalidades da alta sociedade francesa e inglesa, que podiam pagar por preços altos cobrados pe-los fotógrafos retratistas artistas. A fotograa era realizada em estúdio com cuidadosos recursos de

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disso, ele dispunha de um sortido guarda roupa, que emprestava aos clientes destituídos de ves-tuário compatível ao desejo de demonstração de abastança, especialmente trajes a rigor, que eram descosturados nas costas, servindo, portanto, a todos os tipos de corpos. Embora os fotógrafos atuassem com públicos completamente diferentes, nota-se que a preo-cupação em obter uma fotograa com a melhor aparência do retratado é prioridade, já que davam importância a imagem deixada para a posterida-de. No Brasil, é interessante mencionar a situação dos imigrantes, com seus trajes “domingueiros” (a roupa de sair ou de festa) cujos retratos são, além de objeto de exibição, a ostentação de progresso material e ambição econômica maior. A fotograa passa a documentar para os que estão distantes a prosperidade dos que se mudaram e, em grande parte, não voltaram mais para contar seus feitos.O retrato fotográco tornou-se rapidamente o produto mais vendido da fotograa, e onde nota--se a preocupação com a aparência dos retratados, conforme arma Susan Sontag: “o papel da câmera no embelezamento do mundo foi tão bem sucedido que as fotos, mais do que o mundo, tornaram-se padrão de belo. Aprendemos a nos ver fotograca-mente: ver a si mesmo como uma pessoa atraente é, a rigor, julgar que se caria bem numa fotogra-a”, e ainda “as pessoas querem a imagem ideali-zada: uma foto que as mostre com a melhor apa-rência possível.”A pose é um outro fator que determinou o inte-resse das pessoas em se retratarem, “pois quando um sujeito posa para um retrato, ele se vê frente a uma objetiva e se confronta com quem ele acha que é e quem ele gostaria de se mostrar”, declara Roland Barthes. Assim, através da construção de inúmeros personagens encenados, a possibilidade de criação e de pose conferem o caráter ccional do retrato e do autorretrato.Outro recurso já usado na época foi o retoque, neste caso, após a imagem ser ampliada em papel fotográco, que assim enganavam os espectadores distantes e satisfaziam sonhos secretos em relação a aparência do retratado.Ao mesmo tempo que o retrato se expande por outros continentes, Alphonse Bertillon, funcioná-rio da polícia francesa, após constatar que teria muita diculdade em identicar bandidos atra-vés da fotograa, em 1879 cria um novo método de identicação: fotos padronizadas de frente e de perl onde estão proibidos os retoques, já que isto feria o seu status cientíco, pondo em risco suas qualidades mais importantes para este trabalho, a exatidão e informação.Nelas não são permitidas a pose, a alteração da iluminação e do enquadramento e principalmente o uso de retoques ou correções. Diante de tantas limitações pode-se concluir que nem mesmo os 5% mais belos do mundo quem satisfeitos com suas fotograas de passaporte. Corroborando este fato, Boris Kossoy arma: “as manipulações fazem parte da trama da infor-mação; começam no momento em que o fotógrafo enquadra determinado assunto no visor da câme-ra. Segue ainda durante a pós-produção, no am-biente mágico de tratamento de imagens onde se maquila a realidade, reduz-se rugas e se tornam mais volumosos os seios. As imagens não são ino-centes, elas moldam o pensamento de uma época e conformam mentalidades.”Com esses artifícios, a fotograa se popularizou durante todo o século 20, tornando-se recurso de marketing não só pessoal, mas também de produtos. Até os anos 1890, a moda era retratada nas re-vistas por ilustrações, pois os editores acreditavam que o desenho estava mais próximo da arte. Mais tarde, os avanços nos processos de impressão per-mitiram que as fotograas fossem impressas na Harper’s Bazaar 1881. Imagem de domínio público36

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mesma página do texto e as revistas de moda ca-ram mais disponíveis. Nessas revistas, as roupas tornaram-se o assunto, e isso inuenciou o estilo de vida consumista, que visava exclusividade, pri-vilégio e aspiração à riqueza.A moda encontra na fotograa a ferramenta ideal para a difusão e comunicação de suas fasci-nações, como sonhos, desejos e imaginação. Os elementos visuais contidos na fotograa de moda, são realizados e manipulados por prossionais competentes e por isso agem com grande persua-são no público consumidor. Nas revistas de moda, a fotograa ganhou cada vez mais espaço, abrangendo assim, muitas pági-nas das publicações. Posteriormente, ao migrarem para a internet, através de sites, blogs e redes so-ciais, atingiram um público cada vez mais ávido por imagens e comportamentos. Essa grande inuência da fotograa vai impor também padrões de beleza, através de top models, como ícones de perfeição fí-sica. Uma das personalidades mais famosas quando se trata de fotos é a empresária Kim Kardashian. Sua obsessão por seles no Instagram lhe deu o título de inventora das seles e fez com que ela se consoli-dasse com mais de 232 milhões de seguidores nas redes sociais, que acompanham seu lifestyle luxuo-so por meio do recorte das fotograas postadas, que além de muitas vezes manipuladas, passam a ideia de perfeição, tão problemática quando nos abrimos para a realidade do mundo.Se no início da fotograa a produção do retrato era tarefa do fotógrafo com seu conhecimento téc-nico, no século 21, a invenção de câmeras digitais possibilitam que qualquer pessoa munida de tais equipamentos tenha condições de produzir retra-tos e autorretratos com enorme facilidade. Na era da visibilidade é necessário pertencer ao mundo do espetáculo, onde a fotograa tem papel deter-minante possibilitando a construção de uma ima-gem, um ideal ou de um personagem da sociedade em um dado momento. As redes sociais zeram com que a moda e seus ícones estejam cada vez mais próximos ao leitor/espectador que agora, não apenas vê suas mode-Kim Kardashian e Kanye West no Museu de cera Madame Tussauds.Luke Rauscher, 2016 (Flickr)los preferidas, como nas revistas impressas, mas também tem como comentar, elogiar ou criticar essas celebridades. Essa aproximação permitiu que as redes sociais se tornassem o maior banco de imagens do mundo e nelas as seles atingiram o auge de sua popularidade. Ao oferecer aplicati-vos e ltros que permitem manipulações diversas, causam fascínio a quem utiliza e também a quem vê, curte e compartilha, impulsionando o ego com os elogios e comentários e ocasionando audiência e popularidade. Portanto, ser fotografado é um acontecimen-to em si e no mundo atual os retratos, sejam eles feitos por fotógrafos ou autoretrato , continuam valorizando a beleza, as poses, as roupas, acessó-rios, locais onde são feitos, utilização de efeitos ou ltros pós produção e buscam principalmente a aprovação dos espectadores. 37“as pessoas querem a imagem idealizada: uma foto que as mostre com a melhor aparência possível.”- Susan SontagSalete Santos é bacharel em Fotogra-a pela Faculdade Senac, pós-graduada em Criação Visual e Multimídia, pela Universidade São Judas, e mestre em Comunicação. Fotógrafa desde 1995, trabalhou como fotojornalista e pos-teriormente com fotograa de Moda e também lecionando para cursos superiores de design.

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Canva.com39“o tamanho dos manequins usados para apresentar as roupas femininas é irreal e poderia ser considerado um corpo doente em humanos.”Do ponto de vista biológico, a beleza, ou “atratividade”, é associada à reprodução e à saúde, mas, paradoxalmente, há muito tempo a beleza ditada pela indústria da moda vem se opondo a essa premissa. Apenas nos últimos anos surgiu uma nova direção que nos faz acreditar que os padrões estão desmoronan-do. Como prova irrefutável, temos inúmeros movimentos de bodypositivity se fortalecen-do e, na esfera dos negócios, não existe mais espaço para aqueles que continuam pregando um padrão inatingível e não colaboram com a diversidade. Como exemplo dessa mudan-ça, temos o cancelamento do famoso show da marca Victoria Secrets, que desde 1995 celebrava os corpos extremamente magros das supermodelos intituladas angels. As crí-ticas ao show sempre existiram, porém, com a chegada de um desle similar proposto pela marca de lingerie da cantora Rihanna Savage x Fenty que conta com modelos de todos os tipos de corpos, foi a gota d’água para a anti-ga ideologia da gigante americana não fazer mais sentido. OS PONTOS DE VISTA DA BELEZA futuro_modaA cada dia aumentam as críticas às marcas de moda que se comunicam conosco usan-do corpos irreais e aspiracionais. Quase que como um mecanismo de defesa, mas princi-palmente devido à necessidade de investir no marketing do bem e assumir uma posição de luta, muitas empresas de nosso entorno pas-saram a usar mulheres “de carne e osso” em suas campanhas. Contudo, vivendo a experi-ência de forma mais íntima com o provador e o espelho, permanece a dúvida: o que mane-quins e etiquetas dizem a respeito da indús-tria da moda?Em um estudo conduzido na Inglaterra em 2017, Eric Robinson e Paul Aveyard concluí-ram que os manequins das vitrines, se fossem pessoas de verdade, não seriam saudáveis ao armar que

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Alguns anos se passaram e o problema per-siste conforme pudemos vericar.Uma grande distribuidora de manequins para lojistas em São Paulo, por exemplo, comercializa manequins padrão e plus size. Enquanto as medidas do padrão são magras, como esclarece a especialista em modela-gem Cleusa Bernardes – altura 174cm; busto 79cm; 65cm de cintura e quadril de 87cm –, o chamado modelo plus size é pouco repre-sentativo, pois é magro também: altura de 171 cm; busto de 100cm; cintura de 88cm e quadril de 114 cm. Em contrapartida, na ta-bela de medidas do e-commerce da brasileira Renner, o tamanho correspondente ao mane-quim plus size é o 44 - busto entre 98-102cm; cintura 80-84cm e quadril 108-112cm. Se ti-ver coragem, tire suas medidas.Esta é apenas a ponta do iceberg de uma indústria que por muitas décadas ignorou grupos de consumidores em sua variedade de cores, de tamanhos e de idades ou grupos so-ciais e culturais e, por isso, nos cabe entender de onde vem e como se solidicou essa norma que tornou a experiência completa da moda a um número restrito de pessoas.Ashley Graham, uma das primeiras modelos consideradas plus size.Ashley Graham, 2018 (Wikimedia Commons)Designer Iris Apfel.MiamiFilmFestival, 2015 (Wikimedia Commons)40MODA, ESTEREÓTIPOS E RESISTÊNCIACom o crescimento do prêt-à-porter e a po-pularização da moda a partir dos anos 1950, criaram-se conceitos altamente dependentes da renovação de estilos e gostos que obede-cem a normas de comportamento tidas como ideais. Alguns deles são a cultura ocidental do hemisfério norte, o consumo como sociabili-dade, o corpo e a juventude como patrimô-nio e, obviamente, a moda como um recurso orientado a esses índices. Sendo a moda um fenômeno coletivo, o alinhamento à imagem esperada – idade, formas, etnia e cultura –, gerou a padronização que, com a difusão da imagem fotográca nas revistas e mais tarde nas mídias digitais, só aumentou.A idade talvez seja o único parâmetro transversal de beleza que afetará a todas indistintamente, mas, apesar disso, a consumidora com mais de 50 anos é esquecida pelo mercado da moda e amada pela indústria cosmética que lhe promete a reversibilidade do tempo. Num mundo onde o sentido de “ser velha” do ponto de vista da

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Instagram @Advacedstyle, dedicado a beleza da mulher madura41economia da beleza é antecipado, esta parece uma grande controvérsia.Durante a pandemia o ageísmo veio à tona. Quantos se chocaram em ver belas mulheres que deixaram seus cabelos brancos oresce-rem e quantas vezes isso foi assunto (?), de-monstrando uma vez mais como a sociedade encara negativamente o envelhecimento fe-minino? Como argumentam as canadenses Ela Veresiu e Marie-Agnès Parmentier em sua pesquisa (Advanced Style Inuencers: Confronting Gendered Ageism in fashion and Beauty Markets), a idade não é apenas um fenômeno biológico, mas uma estrutura social de desigualdades que desvaloriza, mar-ginaliza e transforma a idade em uma doença, o que faz com que, especialmente as mulhe-res nas sociedades ocidentais, não sejam vis-tas como plenamente mulheres e plenamente consumidoras. Para elas,A não aceitação dos corpos e condições reais pela moda, pode ser visualizada, também, quando falamos do público plus size, cada vez mais presente em capas de revistas, editoriais de moda, lookbooks e seleção de inuencers. Segundo a Dra. Lauren Peters, uma das grandes especialistas mundiais no estudo da moda plus size e professora do Columbia College Chicago, um dos estereótipos mais presentes “em grande parte das publicidades e editoriais é o da mulher gorda como resiliente, desaadora e corajosa, com o objetivo de desmisticar a ideia de que mulheres gordas são preguiçosas. Embora eu não pense que esses estereótipos são ruins ou perigosos em si mesmos”, comenta Lauren, “o mercado de moda é muito limitado, pois os designers continuam a ignorar a mudança nas medidas dos corpos e da postura da mulher madura.”“penso que pode ser limitante no sentido de que é proibido para a mulher gorda ser tranquila ou glamorosa, enquanto reica que a única forma de ser uma pessoa gorda ‘boa’ é sendo ativa e disciplinada.”

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Atriz Yalitza Aparicio.Cal Laird, 2019 (Wikimedia Commons).Instagram @sciuraglam42Um outro estereótipo deagrado, é aquele relativo à etnia e religião que, segundo a so-cióloga indonésia Refti Handini Listyani, é uma consequência do colonialismo. Na sua opinião, ela que é doutoranda na Faculdade de Ciências Políticas e Sociais de Airlangga (Indonésia), a cultura hegemônica tem re-presentado as mulheres não ocidentais como “simplórias, atrasadas, ligadas ao ancestral, submissas aos homens, voltadas para o lar e vitimizadas,” enquanto as mulheres europeias e norte-americanas são “modernas, educadas, independentes, saudáveis e livres física e sexu-almente para tomar suas próprias decisões.” Essa dicotomia, ainda viva na cabeça das so-ciedades colonizadas, “glorica a superiorida-de ocidental” que se consolida como modelo de beleza padronizado. Por essa razão, não é incomum que todas as mulheres do mundo se espelhem nessa imagem de sucesso, o que nos faz crer que esse pode ser o caminho a trilhar: desmontar a relação entre beleza e sucesso.Um excelente exemplo para demonstrar tais preconceitos, foi lembrado pela antropó-loga equatoriana, Dra. María Moreno Parra, que é estudiosa das relações entre raça-etnia e gênero. Ela contou que a indicação ao Oscar da atriz Yalitza Aparicio, de origem mixteca e protagonista do lme Roma, causou contro-vérsias. Yalitza apareceu na capa das revistas de moda ocupando um lugar que sempre foi território de pessoas com outras origens e ou-tros corpos e, para alguns, segundo María, isso marcou “uma ruptura”, pois a jovem indígena representou a nação mexicana e povos latino--americanos globalmente, diferentemente do que sempre ocorreu.Ao contrário das capas das revistas ou do tapete vermelho, as redes sociais se consoli-daram como espaços de vozes múltiplas e, por isso, têm sido usadas como arena da batalha da representatividade na moda em todo seu multifacetado espectro e é a partir dela que, nos últimos tempos, consumidoras clamam por mudanças na moda.O perl do Instagram @advancedstyle, estu-dado pelas pesquisadoras Veresiu e Parmentier, e que, atualmente, conta com 313 mil seguido-res, é uma prova de que o interesse pela moda e pelo cultivo da identidade não morre ao entrar nos 50. Criado pelo fotógrafo americano Ari

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Instagram @sciuraglam43Seth Cohen que também atua em outros meios e mídias, não é exatamente um exemplo de um perl combativo mas, assim como o milânes @sciuraglam, narrativo. Uma coletânea de fo-tos de mulheres (principalmente) com mais de 60 anos, sempre vestidas de forma autoral, di-vertida (no caso estadounidense) ou “ousada” (no caso italiano), mostram que existe beleza na maturidade e que também este é um mer-cado real.Uma outra prova de resistência, aponta-da pela especialista Lauren em seu artigo Discourses of discontent: fashion, feminism and the commodication of fat women’s anger, é a campanha #makemysize lançada pela inuencer e ativista plus size Katie Stu-rino que conta atualmente com 619 mil segui-dores. Cansada de experiências frustrantes na hora de comprar roupas, com essa hash-tag, Katie pede às marcas que criem peças em todos os tamanhos, possibilitando que todas as mulheres desfrutem da moda independen-temente de suas medidas. Seus posts muitas vezes beiram a ironia, pois ela monta looks comparativos iguais aos de mulheres magras e famosas, mostrando que sim, mesmo não sendo o corpo aclamado, ele também pode explorar a moda.Finalmente, é nas redes sociais também que mulheres muçulmanas encontram es-paço para falar sobre moda e beleza. Como esclarece Refti,MODA, HEGEMONIA E REPRESENTATIVIDADEA culpa da imposição de um único mode-lo de beleza “perfeito” não é da indústria da moda, mas, como adverte Sarah Bonell, “a moda tem em suas mãos uma oportunida-de única de fortalecer o movimento de body positivity, apesar de não ser a única respon-sável.” As imagens que a indústria da moda se acostumou a promover para vender seus produtos, afirmam diversas especialistas consultadas, é prejudicial principalmente para as mulheres mais jovens. Discutir a representatividade é rever o sen-so de beleza que foi sendo cultivado e distri-buído por todo o planeta, principalmente pelo cinema, revistas e televisão ao longo do sécu-lo 20. Segundo Stephen Gundle no espeta-cular livro Figure del Desiderio: Storie della bellezza femminile italiana, foram as mulhe-res do cinema que “inventaram” a beleza pa-dronizada, supostamente reproduzível pela cosmética e pela moda. Esse tipo de beleza fa-bricada em série, eliminou particularidades, identidades e sobretudo a naturalidade que, ao longo do tempo, foram sendo socialmente desvalorizadas e associadas a fracassos, im-potências e, sobretudo à exclusão social. Esse fenômeno se repete de norte a sul e de leste a oeste do planeta.Sem dúvida, uma das razões para que isso aconteça é que a mesma mídia que dá espaço para que a diversidade se manifeste, propaga imagens de suposta perfeição. Inúmeros ltros e o Photoshop, comenta Sarah, falham ao criar “um nível de beleza” simplesmente inalcançá-vel por mulheres e meninas. “Nós precisamos lembrar,” argumenta Sarah, “que muito do que vemos é inatingível, e que modelos e inuen-cers são altamente retocadas para conquistar a imagem das mídias sociais. Muitas vezes, in-clusive, essas mulheres passaram por cirurgias para conseguir esses corpos impossíveis.”Olhemos para a América Latina, onde ainda “resiste um legado histórico no qual a beleza e o êxito social estão ligados à branquitude ou, comparativamente, ao mais branco”, como nos conta María. Para a antropóloga, os modelos de beleza circulam globalmente, mas a maio-“as mídias sociais são usadas como meio para a autoexpressão, autopromoção, para estabelecer conexões e criar narrativas. Por meio de suas contas nas mídias sociais, se mostra a beleza no contexto das mulheres muçulmanas em hijab que passaram por transformações e não apenas priorizam a beleza espiritual, mas também o equilíbrio com a beleza física.”

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Modelo vestindo um hijab no “Moslema In Style Fashion Show”.Firdaus Latif, 2012 (Wikimedia Commons)44ria de nós “não cabe neles” e, portanto, não se trata só de buscar a representatividade “e de somar outras belezas”, mas principalmente deMesmo em países mais ricos e, suposta-mente de cultura mais autônoma onde as mulheres, inclusive, lutam lado a lado com homens no mercado de trabalho e nos bancos universitários como nos explica Jung, a ima-gem hegemônica é forte e inuencia compor-tamentos. Especialista em moda e psicologia e tendo sido criada em um ambiente bicultu-ral entre Coréia e Estados Unidos, ela arma que “enquanto os conceitos tradicionais de beleza na Coreia são um pouco diferentes da-queles das sociedades ocidentais, o ideal de beleza atualmente é muito próximo dos cri-térios endossados pelo Ocidente, como a ma-greza, a altura e os traços faciais atrativos. As variações culturais estão se estreitando cada vez mais no mundo inteiro.” Assim, do ponto de vista da indústria da moda e da beleza, na seleção de suas repre-sentantes ou promotoras de seus produtos e mesmo de seus manequins nas lojas, buscar a proximidade com a realidade é uma forma de diminuir frustrações e descontentamentos que, sem dúvida, são importantes. Segundo Sarah, Em sua opinião, se conseguirmos mudar a forma que a beleza é representada na mídia hoje, em algumas gerações mulheres e meni-nas estarão livres dessa inuência.” Porém, prossegue Sarah, “a forma como nós nos refe-rimos a outras mulheres e aos homens sobre a beleza”, também precisa ser mudada. “questionar um modelo eurocêntrico que ainda hoje é paradigmático e que é um elemento a mais nas desigualdades baseadas em raça-etnicidade e no status socioeconômico.”“a representatividade não solucionará padrões irreais de beleza, mas poderá ajudar.”MODA E IMAGEM: O PADRÃO DISSIMULADOSe levamos a sério a frase de Alexander McQueen – “A moda deve ser uma forma de escapismo e não uma forma de prisão” –, te-mos muito a pensar sobre os discursos que acabam se tornando novas amarras. Como pontuou Lauren, o mito da mulher gorda e corajosa difundida pelas redes sociais é exem-plicado na hashtag #ThisBody lançado por Lane Bryant (885 mil seguidores) com o uso de fotos de mulheres sempre ativas, reforçan-do o estereótipo da rearmação. Essa constatação se repete em cada um dos parâmetros considerados. Nos pers que se posicionam contra o ageísmo, por exemplo, vemos que existe uma certa dose de fantasia no que se refere que ao envelhecer: perde-ríamos um pouco a cabeça e deveríamos nos tornar ousadas e extravagantes. Muitas cores, adereços, estética amboyant entre tantos ou-tros detalhes, ilustram uma visão de mundo de “velha e louca” interessante para o mercado de imagens. É uma certa ironia que cola ao estere-ótipo do “envelhecer bem” e que se assemelha a outras consequências das supostas rupturas.No caso do reconhecimento das belezas na-tivas ou mesmo de crenças que têm reverbera-ção na vestimenta, isso é mais agrante ainda. Como descreveu María, uma certa “folcloriza-ção” se manifesta quando se espera que a be-leza indígena seja fossilizada e que não mude

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Modelo vestindo um hijab no “Moslema In Style Fashion Show”.Firdaus Latif, 2012 (Wikimedia Commons)45 “a beleza não é um assunto supercial e, ao contrário, tem implicações profundas na vida das pessoas, especialmente das mulheres e das mulheres mais jovens. As noções de beleza estão ligadas a como nos sentimos com nossos corpos: aceitamos, negociamos, nos deixamos cativar, renegamos ou impugnamos as noções predominantes de beleza.”nunca, sob pena de ser acusada de “não autên-tica” apenas para satisfazer o mercado con-sumidor desse imaginário. Fenômeno similar acontece também em nome do mercado que, com o apoio das mídias sociais, transforma a cultura em mercadoria, como explica Refti: “O uso do hijab em si é uma obrigação no Islã, mas por outro lado, hoje o hijab se tornou uma tendência da moda. Na cultura da beleza, as mulheres são vítimas ou objetos da mídia. Mas as mulheres também são cientes de que seus corpos são ‘scalizados’ na hegemonia dos pa-drões de beleza. Assim, a mídia está lentamen-te transformando as mulheres muçulmanas em objetos de mercantilização.”Mas, o que no fundo pode incomodar mes-mo é que independentemente da oposição entre Oriente e Ocidente, juventude e maturi-dade, liberdade e tradição ou uma guerra de tamanhos, existe um aspecto da busca da bele-za que é vista como a materialização de quali-dades dos indivíduos. De acordo com a Profa. Jung, uma grande preocupação na Coreia é “se você consegue dar uma impressão positiva aos outros”, pois, “o que “é belo é bom.” Da mesma forma, muitas vezes encaramos que a pessoa não alinhada com o padrão é alguém que não se cuida e que, portanto, seria incapaz de cui-dar de qualquer outra coisa. Por que, anal, não podemos simplesmente ignorar tudo isso e o espelho? Por razões bio-lógicas parece impossível, mas, do ponto de vista social é libertador. Para María,Sarah Bonell é doutoranda em psico-logia na Universidade de Melbourne, na Austrália. Sua pesquisa versa sobre os padrões de beleza contemporâneos e como eles impactam na adesão das mu-lheres às cirurgias plásticas. É co-autora do artigo The cosmetic surgery paradox: Toward a contemporary understanding of cosmetic surgery popularisation and attitudes. (sbonell@student.unimelb.edu.au)María Moreno Parra é uma antropóloga equatoriana, professora e pesquisadora na Flacso - Equador. A beleza é um dos temas de seu interesse porque na Améri-ca Latina ela cruza assuntos como raça, etnicidade, classe social e gênero. Entre outros, é autora de Misses y concursos de belleza indígena en la construcción de la nación ecuatoriana.Lauren Downing Peters é pesquisa-dora, editora e professora no Columbia College Chicago - EUA, no Departamen-to de Estudos da Moda. Uma das mais importantes pesquisadoras na área de moda plus size, possui inúmeros artigos e papers publicados, além de livros den-tro de sua área de atuação. https://www.laurendowningpeters.com/Cleusa Bernardes é professora univer-sitária na área de moda.Jung Jaehee é professora no Departa-mento de Estudos da Moda e do Vestu-ário da Universidade de Dalaware nos Estados Unidos. Com formação em moda, psicologia e marketing, ela atua diretamente na no confronto entre as normas e cultura ocidentais e orientais, pesquisando sobre psicologia da moda e da aparência e, especicamente, a ima-gem do corpo. Multicultural, cresceu na Coréia, atuou também como docente e pes-quisadora na China e nos Estados Unidos, tendo inúmeros artigos publicados.Refti Handini Listyani é socióloga e doutoranda em Ciências Sociais na Universidade de Airlangga na Indoné-sia, além de atuar como professora as-sistente. Pesquisadora e especialista em questões de gênero, tem grande interes-se pelas questões da indústria da bele-za e mulheres muçulmanas. Autora de inúmeros artigos e capítulos de livros, entre eles, Against Women’s Violence: The Subjectivity of Women’s Body in “NM” Instagram Account.

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http://fashion-for-future.it/marangoniEstude no Istituto Marangoni com todo o suporte da Fashion for FutureAGENTE OFICIAL DO  ISTITUTO MARANGONI